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Conselheiros do atraso

Editorialistas repetem um liberalismo de mentes caquéticas

O otimismo dos jornais com o futuro imediato da economia debocha da fome enquanto o governo avança ainda mais na sanha liberal, da qual a Embraer só escapou por um acaso - Imagem: Embraer e Raimundo Paccó/AFP
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O domingo 9 de outubro amanheceu ao som do rufar dos editoriais da mídia dita corporativa. As peças opinativas dedicaram-se a exigir definições programáticas do candidato Luiz Inácio Lula da Silva na conturbada área econômica.

Não percebi a exigência de explicações semelhantes ao candidato Bolsonaro. Talvez os sábios editorialistas as considerem inúteis ou talvez desnecessárias, porque reconhecem satisfatório o desempenho das políticas econômicas comandadas pelo Posto Ipiranga, Paulo Guedes.

O editorial da Folha de S.Paulo celebra as conquistas da política econômica bolsonarista na posteridade da pandemia da Covid:

“A despeito de dificuldades, o panorama econômico, decisivo em qualquer eleição, não corresponde a um cenário de terra arrasada. O aumento do otimismo com o futuro imediato, cumpre recordar, já era detectado pelo Datafolha antes da abertura das urnas. A inflação que aflige pobres e remediados começou a ser contida. O emprego avança com força neste ano. Trabalhadores que obtiveram vagas e empresários que contrataram querem saber o que lhes aguarda. É um acinte, portanto, que Lula mantenha a opacidade quanto a seus planos e nomes para a gestão da economia – além de um erro estratégico  que pode ter lhe custado a vitória no primeiro turno. Afinal, a pauta situacionista é, por definição, mais previsível”.

Não parece ser esta a opinião dos mais de 30 milhões de brasileiros que se esbatem entre as penúrias do desemprego e as crueldades da informalidade, dos baixíssimos rendimentos e da fome.

Já o jornal O Globo, em seu editorial, questiona a proposta de reindustrialização aventada por Lula em reunião na Fiesp:

“O Brasil tem longa tradição de subsídios e programas protecionistas para indústrias ‘estratégicas’ ou ‘nascentes’. Os gastos se perpetuam, a proteção não as expõe à competição e eterniza as ineficiências, cujo custo é pago pelo consumidor e pela sociedade. O protecionismo é a receita para emperrar o principal motor do crescimento saudável: a produtividade. São tantas as iniciativas do tipo no ­país, que não é coincidência a produtividade brasileira estar estagnada há décadas”.

Vou me dedicar à questão da reindustrialização.

A perda de dinamismo da indústria brasileira, nos últimos anos, provocou uma reação pavloviana nos bem-falantes: vamos abrir a economia e expor a indústria aos ventos benfazejos da globalização. A alma dos consumidores se alegra, os mauricinhos estremecem de excitação: já se veem sentados numa BMW de último tipo, deslizando pelas ruas esburacadas das metrópoles africanizadas do nosso querido Brasil. Enquanto os bacanas se refestelam, a ninguenzada toma ferro.

Se a indústria deixou de se modernizar, a solução é destruí-la, pregam os sabichões

A lógica dos sabichões é singular: se a indústria brasileira perdeu a ­capacidade de investir ou de se modernizar, a solução é destruí-la. É o silogismo binário dos indolentes: se o problema é de difícil solução, convém eliminá-lo para evitar aborrecimentos.

Em seu liberalismo tosco, o governo Bolsonaro e seus porta-vozes oficiais e midiáticos propugnam pela exposição pura e simples do setor industrial à concorrência externa. Os editoriais da Folha e O Globo sugerem que essa abertura será capaz de promover a modernização tecnológica e os ganhos de produtividade e competitividade.

Para começo de conversa, é bom registrar que a concorrência nos mercados industriais está marcada por características que não guardam qualquer semelhança com as superstições dos fanáticos do liberalismo das cavernas.

Em artigo escrito com o professor Davi Antunes, tratamos das transformações do capitalismo ocorridas desde os anos 70 do século XX. Essa reestruturação do capitalismo envolveu mudanças profundas na operação das empresas, na integração dos mercados e nas relações Estado-Setor Privado. As decisões empresariais estratégicas foram submetidas ao “comando sistêmico” de poucas instituições financeiras. Sob os auspícios do capital financeiro, ocorreu a centralização do capital à escala mundial.

A centralização da estrutura produtiva ocorreu em conjunto com a profunda reorganização empresarial, levando a uma redução drástica do número de empresas. Toda a economia mundial passou a ser dominada por pouquíssimas companhias, em geral de países desenvolvidos. O setor de equipamentos de telefonia móvel, por exemplo, é dominado por cinco fabricantes, o farmacêutico por dez, e o de aviões comerciais de grande porte por apenas duas. Em termos de investimento em pesquisa e desenvolvimento, a situação é semelhante: apenas cem grandes corporações concentram 60% do gasto em P&D, sendo dois terços dos investimentos realizados em apenas três setores (informática, farmacêutico e automotivo).

Os editoriais deploram a política de “campeões nacionais”. Seus algoritmos cognitivos não conseguem compreender que o capitalismo do século XXI se desenvolve sob o comando dos “campeões mundiais”.

Essas transformações sugerem que se esgotaram as formas de financiamento, de incentivos e de proteção, responsáveis pela sustentação do desenvolvimento industrial brasileiro ao longo de mais de cinco décadas.

É preciso imaginar como seriam construídas as novas articulações entre as instituições financeiras públicas e privadas para estimular o avanço de um mercado de capitais comprometido com o financiamento de longo prazo. Também pensar como seria executada a reforma fiscal ou dar tratos à bola para estabelecer uma sintonia delicada entre a política de comércio exterior e a estratégia de crescimento e modernização da indústria brasileira.

O sucesso das políticas de desenvolvimento depende crucialmente de uma reforma institucional. Seria recomendável a recriação, junto ao gabinete da Presidência da República, dos Grupos Executivos, à semelhança do governo Juscelino Kubitschek durante o Plano de Metas. Eram comitês incumbidos de administrar um sistema de coordenação público-privada, com participação de trabalhadores, empresários e profissionais. O sucesso do passado pode, sim, inspirar um presente desalentado.

As duas peças de Opinião repetem os mantras de um liberalismo que só sobrevive em suas mentes caquéticas, escolha doutrinária que frequenta os salões da oligarquia nativa. Seus cantos e encantos alcançaram intensos decibéis, a ponto de comover os toscos neurônios de Jair Bolsonaro. Em entrevista à revista Veja, Jair confessou sua conversão ao liberalismo econômico, a despeito de sua notória adesão ao autoritarismo político. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1230 DE CARTACAPITAL, EM 19 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Conselheiros do atraso”

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