Economia
Confusão na Petrobras
Se a empresa não controlar o pagamento de dividendos, terá de se endividar para fazer novos investimentos


Segunda-feira, 11 de março de 2024, o dia amanheceu ao rufar dos tambores da mídia nativa. Quando os bumbos batem, alguém está condenado à execução. O patíbulo dos sabichões e sabidinhas exibia um personagem parrudo e orgulhoso. Conhecido como Petrobras, o desditado havia cometido o delito inominável de brecar o pagamento de dividendos extraordinários aos poderosos acionistas da empresa.
A Agência Brasil, ao tratar da barulheira mercadista, apresentou informações necessárias à avaliação da controvertida questão dos dividendos:
“A Petrobras foi a petroleira que mais pagou dividendos aos acionistas em 2023, quando comparada com outras cinco grandes companhias do setor: Chevron, BP, Total, Shell e Exxon Mobil, segundo levantamento da Associação dos Engenheiros da Petrobras (AEPET). Enquanto a Petrobras pagou 20,28 bilhões de dólares, a segunda colocada, que foi a Exxon, pagou 14,95 bilhões em dividendos.
“Em 2023, a Petrobras, apesar de ter a menor receita entre as seis empresas, pagou o maior montante em dividendos. Além disso, foi a petrolífera que realizou o menor investimento líquido”, afirmou o presidente da AEPET, Felipe Coutinho.
Em 2023, a Petrobras investiu 12,7 bilhões de dólares, crescimento de 29% em relação ao ano anterior. Apesar do aumento nos investimentos, o economista do Observatório Social do Petróleo, Eric Gil Dantas, avaliou que eles ainda são baixos se considerados os planos da companhia. “Não faltam projetos que estão sendo tocados, são refinarias, eólicas, novas fronteiras exploratórias, novos produtos ligados à transição energética. Se a Petrobras não controlar o pagamento dos seus dividendos, ela terá de se endividar para fazer esses investimentos”, avaliou o economista.
Ao escutar as lições dos algozes da Petrobras, ocorreu-me investigar ou imaginar os estímulos que movem os neurônios dos intrépidos comentaristas. Um deles, o mais contundente, bradava invectivas contra o intervencionismo do presidente Lula. Suspeitei que os neurônios dos simpáticos rapazes e moças tenham absorvido em doses consideráveis os ensinamentos de um conhecido sacerdote do Deus Mercado, Milton Friedman. Em 1962, ele publicou Capitalism and Freedom.
O livro foi crucial para a defesa da primazia dos acionistas: as corporações não devem ter outro propósito, senão maximizar os lucros para seus acionistas. “Poucas tendências”, Friedman escreveu, “poderiam minar tão completamente os fundamentos de nossa sociedade livre quanto a aceitação da responsabilidade social pelos gestores corporativos. Suas obrigações devem restringir-se a ganhar dinheiro para seus acionistas”.
A expressão “valor do acionista” sintetiza as práticas de gestão empresarial que buscam maximizar a extração de valor de um ativo já existente em detrimento da criação de valor mediante o investimento em um novo ativo reprodutivo. É impressionante a evolução da saída líquida de grana das grandes empresas para remunerar os acionistas e recomprar as próprias ações. No período 1976-1985, as transferências de valor para os acionistas chegaram a 290 bilhões de dólares (0,4% do PIB americano). Entre 1986 e 1995, alcançaram a casa dos trilhões, 1,54 trilhão, para avançar entre 1996-2005 para 4,46 trilhões (2,6% do PIB) no período 2006-2015.
Inverteu-se a relação entre os recursos destinados ao investimento e aqueles utilizados para propiciar a elevação “solidária” dos ganhos dos acionistas e a remuneração dos administradores (stock options). A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou as compras das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos, açoitadas com o guante da marcação a mercado.
Keynes, o John Maynard, dedicou-se a investigar as relações complexas entre Estrutura e Ação, entre os papéis sociais e sua execução pelos indivíduos engalanados nos ouropéis da liberdade e racionalidade, mas, de fato, enredados nas camisas de força da acumulação monetária. Keynes, na esteira de Freud, introduziu as configurações subjetivas produzidas pelas interações entre as formas sociais e seus indivíduos. Estão implícitos os processos de individuação mediados pelo objetivo da acumulação de riqueza monetária.
O despertar social dos gestores corporativos responde às metamorfoses ocorridas nas formas de acumulação da riqueza espargidas pelo mundo capitalista na posteridade dos anos 80 do século XX. Se convocado em sessão de Mesa Branca para avaliar as reformas liberalizantes de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, o espírito iconoclasta de John Maynard Keynes poderia augurar que a Economia Monetária da Produção estivesse prestes a assumir a natureza recôndita que inferniza sua alma, o demônio da Economia da Produção Monetária.
Quando o capital se reproduz mais rápido que o aumento da produção, o passado devora o futuro
As decisões se dilaceram entre partilhar o risco do investimento na produção socialmente útil e geradora de novos empregos e fugir para os escaninhos da valorização “autorreferida” dos ativos financeiros. Nos últimos 40 anos, esse jogo foi jogado nas regras do “nóis cum nóis”: fusões e aquisições, recompra de ações e pagamento de dividendos aos acionistas.
A professora de Direito Katharina Pistor desvenda as razões que hoje perturbam as economias contemporâneas. “A situação é uma quando os acionistas são dispersos. Muito diferente são as condições atuais: os acionistas estão reunidos em blocos, com poder de veto efetivo e capacidade de fixar objetivos comuns.”
Em torno de 74% das ações do JP Morgan Chase são detidas por investidores institucionais, cinco dos quais – incluindo Vanguard, Blackrock e State Street – controlam um terço do total de ações. Pesquisas recentes nos EUA mostram que “os mesmos gestores de ativos globais são os principais acionistas em quase todos os maiores intermediários financeiros, empresas da Big Tech e companhias aéreas”. Para CEOs, o surgimento de blocos de acionistas poderosos mudou o jogo de governança corporativa.
No jogo entre o Sistema e seus protagonistas, as práticas corporativas de extração de valor respondem a um ambiente governado pela lógica da financeirização da riqueza e, ao mesmo tempo, suas decisões atiçam mais combustível à fornalha da valorização de ativos “descolada” da produção de bens e serviços. Descolada, mas não estranha.
Desconfiava um pensador do século XIX que essas formas de valorização da riqueza são, a um só tempo, formas ilusórias que ocultam as relações de produção subjacentes e formas necessárias, enquanto expressões dessas relações transformadas pelo processo fantasmagórico que assombra a vida dos assalariados e dos produtores de mercadorias e serviços.
As abstrações do Dinheiro fazem aparições no mundo comportado da racionalidade e do equilíbrio, como o fantasma de Banquo assombrava Macbeth. “Quando o empresário tende inevitavelmente a se tornar um rentier, dominante sobre os que apenas possuem o próprio trabalho, o capital se reproduz mais velozmente que o aumento da produção e o passado devora o futuro” (Thomas Piketty-2014). •
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
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