Economia

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Botticelli, Rossini e a Calúnia 

O ataque injustificado a Marcio Pochmann e um certo jornalismo

A justiça é ineficiente, tanto na obra de Botticelli quanto na realidade nativa, visto que o acusado já paga pela pena antes mesmo de ser julgado – Imagem: Acervo/Galleria degli Uffizi e Instituto Lula
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Um maremoto de indignação invadiu minhas traquitanas digitais no dia 24 de julho. Os amargores vieram temperados com fortes doses de decepção encaminhadas a conhecidas jornalistas que militam nos almofadados gabinetes do jornal O Globo.

Luis Nassif e sua valorosa GGN, José Carlos de Assis no DCM e a Associação Brasileira dos Economistas pela Democracia (Abed) contestaram as increpações lançadas contra o professor Marcio Pochmann.

Os argumentos levantados são infamantes. Em resumo, Pochmann, confirmado pelo governo como o novo presidente do IBGE, teria o poder de alterar os dados dessa instituição a seu ­bel-prazer, de acordo com sua ideologia.

Abalroado por tais impropriedades, ocorreu-me recordar uma visita à ­Galeria Uffizzi, em Florença. Lá, está exposta uma pintura quase enigmática de ­Botticelli intitulada La Calumnia d’Apelle (A Calúnia de Apelle).

Aqui, devo respeitar as considerações do crítico e historiador Rudolph ­Altrocchi no artigo The Calumny Of ­Apelles in the Literature of the ­Quattrocento. Ele diz que, de acordo com a iconologia, as figuras representadas simbolizam conceitos: a Calúnia, a Inveja, um homem arrastado para o Rei Midas, atento ao que dizem a Suspeita e a Ignorância; o Remorso­ ­observa a cena e a Verdade Nua está distante dos demais. O uso de cores contrastantes, dando a ilusão de claro e escuro, começou a ser utilizado pelo pintor nesse período, sendo essa obra a última sem aspecto religioso que ele produziu.

Botticelli retrata o magistrado em posição contrária à Verdade, que, ao apontar para o céu, sugere que ela cabe ao divino, assim como a Justiça. Assim, o artista retrata a ineficiência da Justiça no mundo, visto que o acusado já paga pela pena antes mesmo de ser julgado. Ele é arrastado pelos cabelos e não aparece em posição suplicante, como se já tivesse perdido a esperança. As testemunhas são a Suspeita e a Ignorância, que atormentam o magistrado, incapaz de pautar argumentos na vontade divina. Os olhos dele estão direcionados ao nada, como se não devesse atentar-se para o que estão dizendo e retomando a ideia de que a Justiça é cega.

Não por acaso, a lembranças de ­Botticelli sacudiram minha memória para os versos e acordes do Barbeiro de ­Sevilha do também italiano Rossini. Na Ópera-bufa, o personagem Bartolo, tutor de Rosina e apaixonado por ela – um médico charlatão, ciumento e avarento – desbrava as maldições da Calúnia.

“A calúnia é como um vento. Um ventinho muito fresquinho. Que insensível e fraquinho, mansamente, docemente… Já começa, já começa a sussurrar. Baixo, baixo. Bem por terra. Como cobra, sibilando. Vai correndo, vai correndo. Vai rondando, vai rondando. Nas orelhas dessa gente s’introduz e s’introduz diretamente. Bem na testa, na cabeça, bem na testa, na cabeça. É um estrondo, é um estrondo, faz rodar! E das bocas vai nascendo. O tal vento vai crescendo. Ganha força pouco a pouco. Voa já de povo em povo. Com’o som da tempestade que começa na floresta, Vai crescend’apavorando, e te faz de horror gelar. Ao final rebenta, explode, se propaga, rodopia, E produz uma explosão! Como um tiro de canhão, como um tiro de canhão! Terremoto um temporal, um terremoto, um temporal. Um terremot’um temporal que faz os ares ribombar. Terremoto, um temporal, um terremoto, um temporal. Um terremot’um temporal que faz os ares ribombar. E o pobre caluniado, ah, tadinho, desprezado… Sob o público flagelo vê sua sorte naufragar! E o pobre caluniado, ah, tadinho, desprezado… Sob o público flagelo vê sua sorte naufragar! Sim, naufragar, sim, naufragar.”

Em se tratando de um economista com passado profícuo e absolutamente limpo de serviços públicos, levantar uma suspeita, como fez a colunista do Globo, Miriam Leitão, em seu blog, reproduzindo ataques de Malu Gaspar da véspera, é calúnia gratuita. Pode-se imaginar que elas estejam se apoiando em fatos comprováveis internos. Não é o caso. Baseiam-se em situações vividas na Argentina pelo órgão de pesquisa de lá, atribuindo a Pochmann os mesmos vícios que distorceram os dados estatísticos locais nos governos Kirchner.

Levantar suspeita sobre um economista de passado limpo e profícuo é calúnia gratuita

Ninguém jamais o acusou de falsificar dados ou violar evidências científicas em nome de ideologias. Aliás, sua maior característica é justamente ancorar suas pesquisas em dados colhidos em pesquisas sérias e com absoluto respeito às regras e princípios que devem reger a investigação em uma área do saber muito complexa, tal como é a economia. Assim ­Pochmann se comportou quando esteve à frente do Ipea nos governos anteriores de Lula.

Miriam Leitão e sua colega do Globo, porém, acusam Pochmann de “ideológico”. Como se houvesse alguém, inclusive ela, antes guerrilheira e hoje tão próxima do Centrão, que não a tivesse. Colocar em dúvida a reputação científica de alguém em razão de sua proximidade com correntes de esquerda é uma irresponsabilidade.

De fato, o que Miriam e Gaspar fazem não é propriamente uma guerra supraideológica contra a esquerda, mas uma guerra ideológica, talvez, inconsciente, que se alinha às visões mais toscas a respeito de ciência e ideologia.

Em seu livro Abismo Vertiginoso, ­Carlo Rovelli apresenta um exemplo simples da forma de conhecimento nas hipóteses envolvidas na Física Quântica: “Tomemos um objeto, a cadeira que tenho diante de mim. É real e de fato está diante de mim: não há dúvida. Mas o que exatamente significa que aquele conjunto seja um objeto, uma entidade, uma cadeira, real? A noção de cadeira é definida por sua função: um móvel construído para que possamos nos sentar. Pressupõe a humanidade, que se senta. Não diz respeito à cadeira em si: diz respeito à maneira como a concebemos. Isso não interfere no fato de que a cadeira existe ali, como objeto, com suas óbvias características físicas, cor, dureza etc. Por outro lado, essas características também são relativas a nós”. Não vou exigir que as simpáticas jornalistas compreendam as determinações entre o pressuposto e o posto, ou seja, entre a definição do objeto e a investigação de sua estrutura e dinâmica.

O Sistema Globo, nas últimas eleições, juntou-se a outros jornais da grande imprensa brasileira justamente para combater fake news, uma iniciativa positiva, porquanto, com a internet, centenas de milhares de pessoas ficaram expostas a notícias falsas espalhadas por manipuladores. Seria um retrocesso, se o Sistema Globo e seus colunistas abandonassem essa cruzada. •


* Economista e professor na Universidade Estadual da Paraíba.

Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.

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