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Aprendiz de feiticeiro

O Banco Central brasileiro ignora as lições do passado e as políticas de seus pares internacionais

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Aprendiz de feiticeiro
Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR e Britt Leckman/FED
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A história nos ensina que um Banco Central mal orientado pode causar grandes convulsões econômicas, como a crise de 1929 ou a turbulência dos anos 1980, quando Paul Volker, presidente do Fed, subiu o juro norte-americano para mais de 20% ao ano e quebrou vário países emergentes.

Felizmente, os principais banqueiros centrais aprenderam com os erros do passado, aposentaram a Teoria Quantitativa da Moeda e jogaram na lata do lixo os mitos da ortodoxia monetária. Foi o que aconteceu no enfrentamento da grande crise financeira de 2008, quando Ben Bernanke, presidente do Fed, promoveu a forte expansão monetária denominada Quantitative Easing e reduziu as taxas de juro para quase zero, o que ajudou a dissipar a crise do subprime.

O surto inflacionário da pós-pandemia e da guerra na Ucrânia tem sido tratado pelos países ricos, e mesmo pelos menos abonados, com elevação moderada do juro real e com a cautela necessária para não arrebentar a economia desses países. Tanto o Fed quanto o Banco Central Europeu, assim como a maioria esmagadora dos BCs, enfrentam uma inflação que bateu nos dois dígitos com juros reais negativos, caso do BCE, ou próximos de zero, caso do Fed.  Os dois maiores Bancos Centrais têm sido eficientes em combinar o controle da inflação com a manutenção do emprego e das atividades econômicas.

Pena que esse amadurecimento da política monetária não tenha chegado ao Brasil. Os aprendizes de feiticeiro do nosso BC continuam praticando as mais altas taxas de juro reais do planeta.

O presidente do BC, Roberto Campos Neto, insiste em manter a Selic no patamar de 13,75% ao ano e um juro real anual acima de 8%, apesar da evidente queda da inflação nos últimos 15 meses, de 10% em dezembro de 2021 para 4,65% em março de 2023 (IPCA).  O IGP-M tem apresentado deflação desde dezembro passado. A prévia do IGP-M de maio indica deflação de 1,13%, a maior desde dezembro de 2018.

O fato aparentemente ignorado pelos doutos integrantes do BC brasileiro é que o choque de oferta que impulsionou os preços, a partir da falta de chips e componentes da pós-pandemia e o impacto da Guerra na Ucrânia sobre petróleo e alimentos, está se dissipando. Os preços dos alimentos caem, assim como aqueles das ­commodities minerais e do barril de petróleo.

A supersafra brasileira deste ano continuará a garantir uma boa oferta de alimentos nos próximos meses. Até El Niño tem colaborado com a queda da inflação, ao provocar chuvas abundantes que vão reduzir as tarifas de energia. A valorização do real, que tende a se acentuar com a reforma tributária e o novo arcabouço fiscal, é outro fator que vai puxar a inflação brasileira para baixo. A inflação de 5,8% prevista para 2023 está na média histórica dos últimos 20 anos.

Por trás da suposta orientação técnica do BC está a intenção maquiavélica de controlar a política fiscal

Neste cenário, não faz sentido impor um juro real de 8,4% (em maio deste ano), enquanto a maioria esmagadora dos paí­ses opera com juro real negativo ou próximo de zero. Sem esquecer que os 13,75% são as taxas de captação das instituições financeiras, que emprestam às empresas e à legião de endividados a juros ­anuais de 24% para as primeiras e até mais de 500% aos desafortunados consumidores.

Por trás da atitude supostamente técnica do BC esconde-se uma intenção maquiavélica de controlar a política fiscal. O objetivo é obrigar o governo Lula a engolir um arcabouço fiscal austero, parecido com o Teto de Gastos, e manter uma camisa de força nos bancos públicos. Essa política monetária ultracontracionista de Campos Neto provoca uma crise financeira, responsável pelo aumento da inadimplência e quebra de várias empresas, na esteira do caso da Lojas Americanas. Salta à vista que a expansão do volume de crédito previsto de 2023 (de 8,3%) é insuficiente e muito menor que a expansão de 2020 (15,6%), de 2021 (16,3%) e a de 2022 (14%). Essa expansão reduzida do crédito para 2023 vem acompanhada de juros maiores e uma elevação da inadimplência.

Vários grupos de varejo têm reduzido suas atividades, dispensando funcionários e fechando pontos de venda, por falta de crédito barato. O Índice de Atividade Econômica “Stone Varejo” detectou queda de vendas de 7,7% em abril, em relação ao mesmo mês do ano passado, e de 1,7% em relação a março deste ano.

O principal malefício do juro altíssimo é a limitação do crescimento e a deterioração das contas públicas. De acordo com a pesquisa Focus, principal balizadora das decisões do BC, a projeção para o crescimento do PIB em 2023 é de apenas 1% e, em 2024, de 1,4%, bem abaixo do potencial de crescimento do País.

As elevadas taxas de juro são responsáveis pelo alto déficit nominal (resultado primário mais despesas com juros sobre a dívida), assim como pelo aumento da dívida bruta brasileira. O pagamento de juros da dívida pública no ano passado foi de 586 bilhões de reais, equivalentes a 5,8% do PIB, enquanto, em 2023, a despesa com juros deve passar de 800 bilhões, equivalente a cerca de 7,3% do PIB. Consequentemente, a dívida bruta passará de 72,9%, em 2022, para cerca de 80%, em 2023, mesmo que não haja ­déficit primário neste ano.

Fica claro que a política monetária praticada pelo Banco Central bolsonarista vai conter o crescimento, deteriorar as contas públicas e catapultar a dívida bruta brasileira para além de 80%. Entretanto, há um crescente descontentamento na sociedade contra os usos e abusos dessa política monetária ineficiente. O BC de Campos Neto brinca com fogo e corre o risco de se queimar.  •


*O autor foi ministro do Planejamento (2003/2004), presidente do BNDES (2005/2006) e ministro da Fazenda de 2006/2014). É professor da FGV-SP.

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aprendiz de feiticeiro’

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