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O apagão que deixou 2 milhões de paulistas sem energia por 72 horas é mais uma prova do estrondoso fiasco das privatizações

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Exemplos. Em cinco anos, a Enel reduziu o número de funcionários no País em 35% e conseguiu dobrar o lucro. O investimento preventivo ficou em segundo plano. Logo após o governador elogiar linha privatizada da CPTM, um de seus trens pegou fogo – Imagem: Renato Luiz Ferreira e GOVSP
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Os inimigos mais poderosos das privatizações são as suas próprias consequências, deixaram claro as vidas perdidas, os prejuízos incalculáveis e o pandemônio criado, desta vez na maior cidade do País e em várias outras de menor porte, todas sob a responsabilidade da concessionária de energia elétrica Enel, após o temporal ocorrido em São Paulo na sexta-feira 3. Oito mortos, 2 milhões de pessoas sem luz por mais de 72 horas e danos incalculáveis em mercadorias estragadas por falta de refrigeração, prejuízos provocados pela interrupção do abastecimento em inúmeros setores da economia, são o resultado mais palpável da recente tragédia.

Privatização combina com apagão, resume Carlos Alberto Alves, presidente do Sindicato dos Energéticos do Estado de São Paulo. A venda de estatais que prestam serviços essenciais à população está na contramão do mundo. Vários países estão reestatizando empresas de fornecimento de energia elétrica e abastecimento de água, mas aqui acontece o contrário, existe um processo de aprofundamento das concessões, destaca Alves.

As concessionárias não têm qualquer compromisso com os consumidores

Um dos maiores problemas, avalia o sindicalista, é que não existe compromisso dessas empresas com a sociedade. Elas visam a maximização da rentabilidade e grande parte das que operam no Brasil pertence a fundos de investimento e de pensão espalhados pelo mundo, e que aqui vêm só para ganhar dinheiro. “Com isso, a conta aumenta significativamente. A energia elétrica no Brasil é uma das mais caras do mundo e a qualidade é péssima, porque falta investimento preventivo”, ressalta Alves. Concentradas no lucro, as empresas enxugam a folha, não têm trabalhadores suficientes para manter a concessão como deveriam e não qualificam os funcionários por causa da rotatividade elevada, emenda. “Elas não têm essa cultura de preparar o trabalhador para fazer intervenções no sistema de energia.”

A Enel, em particular, acumula problemas no País. Comissões Parlamentares de Inquérito investigam a empresa em São Paulo, no Ceará e no Piauí. Sua atuação desastrosa em Goiás levou o governador Ronaldo Caiado a dizer que ela era “um caso de polícia”. Após o colapso de São Paulo, a concessionária foi notificada pela Secretaria Nacional do Consumidor, vinculada ao Ministério da Justiça, que exigirá indenização aos consumidores e explicações sobre as medidas adotadas para evitar a repetição do problema. Em cinco anos, a Enel reduziu o número de funcionários no País em 35%, mas conseguiu dobrar o lucro.

Não estar à altura das obrigações não é, porém, uma exclusividade da Enel. Outra demonstração do fracasso das privatizações ocorreu no Amapá, que ficou 22 dias na escuridão, quatro anos atrás, por culpa da empresa privada Macapá Transmissora de Energia. Em agosto, ocorreu um apagão em grande parte do País, um problema da Eletrobras privatizada.

O recente apagão em São Paulo prejudicou o conjunto da sociedade, mas quem mais sofreu foram os pequenos empresários, que perderam tudo, a geladeira e a mercadoria, e as populações mais carentes, as últimas a terem suas moradias religadas. Antes de serem privatizadas, frisa Alves, as empresas de energia tinham responsabilidade com o fomento do desenvolvimento do País. Faziam investimento preventivo, tinham um quadro de trabalhadores suficiente para fazer frente às demandas sazonais e um trabalho de qualificação. “Um eletricista demorava seis meses em treinamento, inclusive com inspeção das linhas. Hoje, após um mês de capacitação, o funcionário já é colocado para trabalhar”, observa.

Dupla. Em pleno apagão, Freitas defende privatizações e Nunes propõe novo imposto – Imagem: Isadora de Leão Moreira/GOVSP

“O que aconteceu em São Paulo é desgraça anunciada”, dispara Eduardo Annunciato, presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo e da Federação Nacional dos Trabalhadores em Energia, Água e Meio Ambiente. Antes da privatização, havia um planejamento e uma sistemática que reduziam o risco de problemas de grandes proporções, comenta. Eletricistas ou técnicos experientes percorriam os circuitos elétricos de quilômetros de extensão que partem das subestações, passam por vários bairros e chegam a cada residência. Verificavam os defeitos e anotavam suas constatações em planilhas levadas à empresa, que encaminhava equipes de manutenção para substituir todos os dispositivos com problemas. Isso era feito no período de tempo mais seco do ano, no outono e no inverno, não deixavam esse trabalho para o verão, quando costumam ocorrer temporais. O Estado assumia esse ônus, porque tinha a missão de manter a rede ligada e em boas condições de operação.

Quando o setor privado compra a empresa, prossegue Annunciato, muda a regra do jogo. Tudo o que ele investe para substituir dispositivos é acrescentado na tarifa. Realizam só a manutenção corretiva, menos dispendiosa, instalam equipamentos que desligam setores e abrem mão da manutenção preventiva, que é mais cara e requer um quadro de funcionários maior e mais especializado.

O prefeito Ricardo Nunes, aquele que em pleno apagão defendeu aumento de impostos para enterrar os cabos elétricos, atribuiu os estragos à queda de árvores sobre a rede de transmissão, mas omite que, desde 2002, a prefeitura está obrigada a fazer a manutenção da arborização, exatamente para minimizar esse tipo de problema. O governador Tarcísio de Freitas, que enalteceu as linhas privatizadas da ViaMobilidade pouco antes de um dos trens dessa empresa pegar fogo, receia que o enorme fracasso da Enel atrapalhe a privatização da Sabesp e do Metrô. Deputados estaduais bolsonaristas farejaram no vacilo do governador uma oportunidade para se apresentar com nova roupagem, eleitoralmente mais palatável, e decidiram se opor à venda da Sabesp, na Assembleia Legislativa e junto ao STF.

A concessão é federal e há todos os motivos para o governo Lula intervir na Enel

“Freitas diz que o contrato de privatização da Sabesp não será frouxo, mas como acreditar nisso se o governo de São Paulo abriu, no mês passado, consulta pública para reduzir multas aplicadas a concessionárias que prestam serviços ruins no estado, inclusive as de transporte, aeroportos e rodovias, com alternativas de descontos entre 15% e 50%?”, questiona Francisca Adalgisa da Silva, diretora da Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp. Em uma preparação para a privatização, a atual gestão “está destruindo a empresa de dentro para fora”, aponta a sindicalista. Fizeram uma reestruturação açodada na empresa e retornaram ao modelo dos anos 1980, quando a companhia era deficitária e não atendia os clientes direito, porque estava excessivamente centralizada.

“Eles tiraram a autonomia das unidades de negócio, o ponto mais importante, pois a estrutura era descentralizada e havia maior facilidade para atender imediatamente os prefeitos e outros clientes regionais dos 375 municípios atendidos”, ressalta Silva. As unidades foram convertidas em áreas operacionais. O superintendente que atendia e negociava direto com o prefeito hoje não tem autonomia para fazer mais nada. A direção da companhia determinou que só fará investimentos nos locais que ainda não atingiram a universalização. Se fornece água para 99% da população e rede de esgoto para 90%, param com os aportes nesses municípios. Os prefeitos argumentam, contudo, que há bairros novos surgindo e há, portanto, necessidade de levar água a essas novas comunidades, mas não há negociação, porque não estava no contrato. Isso não acontecia no passado.

“Além disso, anunciaram a demissão, até julho do próximo ano, de 1,8 mil funcionários, de 12,2 mil, em um plano de demissão incentivada, sem reposição, e suspenderam todas as novas licitações. Estão fazendo só renovação de contrato, porque, depois de privatizar, não será preciso realizar mais licitação”, aponta a dirigente sindical. Reduzirão também a contratação de mão de obra terceirizada. Trata-se de um processo muito semelhante ao que fizeram as empresas de distribuição de energia.

Um abaixo-assinado contra a privatização da Sabesp, encaminhado à Assembleia Legislativa, argumenta que uma das consequências da transferência ao setor privado será o aumento das tarifas, como mostram os exemplos de Campo Grande, Cuiabá e Rio de Janeiro. Lucrativa, a Sabesp distribuiu no ano passado 436 milhões de reais em dividendos ao estado de São Paulo, além da parte encaminhada aos acionistas privados. Dos 375 municípios atendidos, 310 já têm atendimento universalizado.

Sabesp. Qual é o sentido de vender uma empresa pública eficiente e rentável? – Imagem: Sintaema/SP

“A concessão é federal. Caberia ao governo encampar a Enel ou retomar a concessão. Fundamento tem, na lei da concessão, que estabelece os requisitos para essas ações. A questão é que a gente sabe que não vão fazer nada, porque o mercado, coitadinho, não pode ser incomodado”, dispara Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Não se preocuparam nem em retomar a Eletrobras, argumenta Bercovici, quanto mais uma concessão. “A Light no Rio de Janeiro, do mesmo grupo que comprou a Eletrobras, o 3G de Jorge Lemann, está muito pior que a Enel, em situação pré-falimentar, abandonou tudo após uma recuperação judicial fajuta. Também é um serviço público, de titularidade da União. O Ministério das Minas e Energia finge que não é com ele, mas a titularidade do serviço é da União.” Da mesma forma, a fiscalização cabe à Aneel.

A Lei das Concessões, de 1995, prevê intervenção, suspensão ou transferência da concessão ou ainda a encampação da empresa privatizada, no caso de falha na prestação de serviços, não cumprimento das metas e execução inadequada da manutenção da rede. “O governo federal pode intervir. Estão dizendo que é um evento excepcional, que não tinha como prever, mas a verdade é que desmontaram a equipe deles e estão mais preocupados em cortar custos do que em prestar um serviço adequado”, chama atenção o professor. Ao contrário da encampação, que requer uma lei específica, a intervenção pode ser feita por meio de decreto.

Na terça-feira 8, 14 mil imóveis seguiam sem luz na Grande São Paulo, ao contrário do prometido pela Enel. •

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

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