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Devagar com o andor

Funcionários do Metrô, da CPTM e da Sabesp mobilizam-se para resistir à sanha privatista do governador Tarcísio de Freitas

Mobilização. Os servidores alertam para o risco de aumento das tarifas – Imagem: Sintaema/SP
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Em pouco mais de oito meses de gestão, Tarcísio de Freitas notabilizou-se pela desorientação. Anunciava medidas num dia, e desistia no outro. Entre os numerosos recuos do governador paulista figuram as propostas de abandonar o uso de livros didáticos impressos, de transferir a Cracolândia para outro bairro da capital e a promessa de retirar as câmeras das fardas dos policiais militares – as existentes foram mantidas, ele só congelou os investimentos. Ao menos um de seus compromissos de campanha segue, porém, intacto. Em 2022, durante os debates televisivos, o ex-ministro de Jair Bolsonaro anunciou a intenção de privatizar os principais serviços públicos do estado. Desde então, não recuou 1 milímetro sequer da decisão.

Azar dos funcionários da ­Sabesp, do Metrô e da CPTM, atordoados com a pressa para leiloar as lucrativas empresas públicas a toque de caixa. Eles já colecionam dezenas de indícios de irregularidades nos processos de privatização, a começar pela contratação de empresas de consultoria com dispensa de licitação e casos explícitos de conflitos de interesse. Para resistir à sanha privatista, os servidores buscam sensibilizar a população paulista sobre os riscos envolvidos na entrega de serviços essenciais à iniciativa privada. Nas plataformas das estações, sindicalistas buscam envolver os usuário\s dos trens metropolitanos em uma consulta pública.

Os metroviários estão ouvindo os passageiros em consulta pública

Ao convidar os cidadãos para votar a favor ou contra a privatização, as entidades sindicais assumem o risco de colher um resultado diferente do esperado. Mas o objetivo do referendo informal não é exatamente medir a popularidade do projeto, e sim alertar que o processo está em curso e avança de forma acelerada, sem o devido debate. “É uma oportunidade para disputarmos a opinião pública e informar sobre o que o governador quer fazer. Está sendo muito bom, as pessoas estão interessadas em participar, muita gente tem dúvida e é um momento que a gente pode esclarecer”, afirma Camila Lisboa, presidente do Sindicato dos Metroviários de São Paulo. Na terça-feira 12, durante uma ação na estação Jabaquara, a reportagem de ­CartaCapital observou alta participação popular. Em menos de duas horas, havia mais de mil votos depositados nas urnas.

Uma das “eleitoras” é a doméstica Cícera Maria da Silva, que usa o Metrô diariamente para se deslocar até o trabalho. Mesmo no horário de pico, quando os carros da composição estão cheios, o serviço é rápido e eficiente, avalia. “Se privatizar, a passagem vai ficar mais cara. Já pagamos impostos demais, o transporte coletivo deveria ser gratuito”, opina.

Ao término da votação, prevista para ocorrer até 4 de outubro, as urnas serão abertas e o resultado será revelado à população. “A maior parte dos paulistas já percebeu o engodo das privatizações. Com o resultado, vamos seguir pressionando o governador e buscando o apoio de deputados estaduais e vereadores para evitar que o pior aconteça”, afirma Alex Fernandes, diretor de Imprensa do Sindicato dos Metroviários. Com 34 anos de casa, ele observa que a empresa já viveu momentos melhores. O número de funcionários tem sido reduzido ano a ano. Muitos se aposentam, mas as vagas não são repostas. Há dez anos, eram cerca de 10 mil trabalhadores, hoje são 7 mil. “Enquanto isso, o número de passageiros só aumentou, atendemos, em média, 4 milhões de pessoas por dia.” Com a privatização, a categoria teme uma precarização ainda maior. O Metrô realizou seu último concurso em 2019, mas ainda ninguém foi chamado.

Pressa. Freitas não vê a hora de rifar as empresas públicas

Na CPTM, a concessão de linhas ao setor privado está mais avançada. Privatizadas em 2021, as Linhas 8 e 9 são controladas pelo consórcio Via Mobilidade. No fim de março, foi publicado o edital para o leilão da Linha 7, previsto inicialmente para 28 de novembro. As principais empresas interessadas pediram, porém, prazo maior para apresentar as propostas. O projeto prevê um trem rápido para os deslocamentos entre as cidades de São Paulo e Campinas, com uma parada em Jundiaí.

Sob o comando da Via Mobilidade, as condições de trabalho pioraram, afirma Eluiz Alves de Matos, presidente do Sindicato dos Ferroviários de São Paulo. “A jornada de trabalho deles é de 12 horas, enquanto a nossa é de 8 horas diárias. E o salário deles é muito inferior.” O líder sindical teme, ainda, a redução do quadro de funcionários. Quando as Linhas 8 e 9 foram privatizadas, explica, centenas de trabalhadores aderiram a um programa de demissão voluntária. Quem ficou sofre com o acúmulo de funções e jornadas exaustivas. “A qualidade do serviço também despencou. Toda semana tem descarrilamento de trem, o tempo de espera aumentou.”

Não bastasse, a contratação de funcionários terceirizados disparou. Recentemente, a S&G, responsável pela venda de passagens nas Linhas 8 e 9, decretou falência e dispensou os funcionários sem pagar os salários devidos, bem como os direitos de rescisão. Com as bilheterias abandonadas, a CPTM teve de liberar as catracas e, em caráter emergencial, deslocar funcionários que exerciam outras funções para retomar as vendas. “É isso que acontece quando a empresa privada não dá conta das suas atribuições. Sobra para o Estado resolver o problema”, alerta Matos.

Os sindicatos apontam casos de conflito de interesses

No caso da Sabesp, o atual presidente da companhia, André Salcedo, afirma que a privatização deve ocorrer já no primeiro semestre de 2024. A venda permitiria, segundo o gestor, antecipar o cumprimento das metas do Novo Marco Legal do Saneamento, entre elas a promessa de entregar, até 2033, água potável a 99% da população e garantir esgoto tratado a 90%. Salcedo alega, ainda, que o valor da tarifa deve cair. Só não explicou a mágica: como a empresa vai ampliar os investimentos, reduzir as tarifas e, ao mesmo tempo, assegurar a lucratividade esperada pelos acionistas?

“Se o Salcedo está dizendo que vai baixar a tarifa depois de vender, por que não baixa agora? Tem condições de fazer isso. Não existe exemplo no mundo de tarifa menor depois da privatização”, alerta Helena Maria da Silva, vice-presidente do Sintaema, o sindicato dos trabalhadores em água e esgoto. Hoje, a Sabesp atende 375 cidades paulistas e é considerada uma das maiores empresas de saneamento do mundo. O lucro líquido no segundo trimestre deste ano foi de 743 milhões de reais, 73% maior que no mesmo período do ano passado. O governo paulista detém 50,3% do controle da companhia, uma sociedade anônima de capital aberto.

Desculpa. Salcedo usa as metas do Novo Marco Legal do Saneamento como pretexto para acelerar a venda da Sabesp – Imagem: Sabesp

A presidente do Sintaema aponta uma série de irregularidades no processo de privatização, a começar pela contratação do atual presidente, que antes era diretor na Iguá Saneamento, acionista da Sabesp e que tem interesse em aumentar a sua participação. Além dele, a diretora Paula Violanti também veio da mesma empresa. “Eles não respeitaram a ‘quarentena’, o período mínimo exigido para sair de uma empresa privada para assumir uma companhia pública do mesmo setor”, afirma Silva, que encaminhou a denúncia para o Ministério Público Estadual.

Não é tudo. A International Finance Corporation é, ao mesmo tempo, credora e responsável pelo desenho do modelo de privatização da Sabesp. Além do eventual conflito de interesses, a consultoria ligada ao Banco Mundial celebrou contratos milionários com o governo do estado, com dispensa de licitação, para preparar estudos do programa de desestatização, como denunciou o deputado estadual Guilherme Cortez, do PSOL.

Por ora, o Legislativo acompanha o debate a distância. “Até o momento, não chegou nenhuma proposta concreta na Alesp, mas estamos atentos ao que está acontecendo por fora, como os leilões marcados das linhas de transporte sobre trilhos”, diz a deputada estadual Paula Nunes, também do PSOL. A oposição busca o suporte de técnicos e especialistas para resistir em dois fronts: da Frente Parlamentar Contra a Privatização da Sabesp, presidida pelo deputado Emídio de Souza, do PT, e da Frente Parlamentar em Defesa do Serviço Público, liderada por Nunes. •

Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

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