Economia

A vanguarda do atraso

Os empresários golpistas integram setores de baixa produtividade e exploradores de mão de obra barata

Modelo. O bolsonarismo empresarial inclui sonegação, contrabando e humilhações aos trabalhadores - Imagem: Redes sociais
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Além do ultraconservadorismo político e ideológico, o que une os empresários flagrados em diálogos golpistas nas redes sociais e investigados pelo STF é a inserção em setores econômicos caracterizados pela prática da superexploração dos trabalhadores, apontam estudos setoriais e análises de especialistas. As empresas do grupo atuam no comércio varejista, na construção civil e no segmento de confecções, que utilizam grandes massas de trabalhadores mal pagos e submetidos a elevada rotatividade crônica.

Na terça-feira 23, o ministro Alexandre de Moraes, “xerife” das eleições, determinou a busca e apreensão, o bloqueio de perfis nas redes sociais e a quebra dos sigilos bancário e telemático de oito empresários bolsonaristas, por se declararem, no grupo Empresários & Política, do WhatsApp, favoráveis a um golpe de Estado, caso Lula vença em outubro. O octeto é formado por Luciano Hang, proprietário da cadeia de lojas Havan, Afrânio Barreira, controlador da rede de restaurantes Coco Bambu, José Isaac Peres, principal acionista da rede de shopping centers Multiplan, Ivan Wrobel, dono da W3 Engenharia, Marco Aurélio ­Raymundo, diretor da confecção de vestuário esportivo Mormaii, José Koury, sócio principal do shopping Barra World, Luiz André Tissot, o maior acionista do grupo comercial Sierra Móveis, e Meyer Nigri, fundador da incorporadora e construtora Tecnisa. Procurados pela imprensa, todos negaram defender a ruptura institucional e alguns fizeram juras de amor às eleições livres. Segundo consta, o grupo de troca de mensagens sofreu grande número de deserções após a ação do STF.

“Todos eles são ultraliberais, defensores da política econômica do Bolsonaro, portanto, a questão trabalhista está relacionada. Defendem um mercado de trabalho sem direitos e nenhuma regulação”, dispara o economista José Dari Krein, do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp. Os setores têxtil, de comércio e construção, diz Krein, tendem a pagar salários mais baixos em relação aos segmentos mais estruturados da economia. Eles se caracterizam por maior exploração do trabalho, mais problemas de não cumprimento da legislação e maior informalidade. “A tendência é de que, na folha salarial dessas empresas, o peso dos baixos salários seja menor do que numa indústria. A taxa de exploração direta sobre o salário tende a ser muito maior nas empresas do setor de serviços, por exemplo, cuja taxa de retorno está diretamente relacionada ao custo do trabalho e a forma como você pode extraí-lo”, sublinha o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, assessor do Fórum das Centrais Sindicais. As negociações coletivas são complicadas, pois os trabalhadores têm reduzida capacidade­ de organização. Os sindicatos são mais fracos, no sentido de terem menor capacidade de impor uma agenda única. O comércio tem muita dificuldade para alcançar acordos mais consistentes. Na construção civil, os sindicatos têm alguma capacidade, mas não dispõem de grande poder de barganha, pois o setor é muito marcado pela rotatividade.

Assim como Bolsonaro, eles defendem um mercado de trabalho sem direitos

A conexão entre golpismo e abuso de poder em relação aos trabalhadores fica clara em vários trechos dos diálogos entre os empresários. Koury, um dos defensores mais enfáticos de uma ruptura democrática, sugeriu no grupo de mensagens o pagamento de um bônus em dinheiro ou um prêmio para os funcionários das empresas que votassem de acordo com os seus interesses. Raymundo alertou para o risco de essa iniciativa ser considerada compra de votos. “Provavelmente, a artimanha está associada a outras práticas, fraudulentas, ou que fogem ao escopo civilizado de relação de trabalho. Essas empresas são claramente antissindicais, submetem os trabalhadores”, destaca Ganz Lúcio. “Isso faz parte”, acrescenta, “de uma lógica de negócios que o Bolsonaro expressa. Bandidagem, crime, está tudo no mesmo escopo de negócios de apropriação do Estado, da força de trabalho e da natureza. As dimensões da expropriação que eles têm como referência são as mais extensas possíveis”, destaca o sociólogo.

Caso-símbolo do bolsonarismo empresarial, a Havan e seu proprietário, Luciano Hang, “foram muito beneficiados com a ampliação do mercado de consumo e da empresa nacional nos governos do PT e também com Temer e Bolsonaro, pelo arrocho salarial que reduziu o seu custo”, ressalta Krein. A empresa cresceu com substancial auxílio de recursos públicos, principalmente por meio de 50 empréstimos do BNDES, de cerca de 20 milhões no total. Outro reforço de caixa veio da prática contumaz da sonegação de impostos e tributos que deveriam beneficiar os trabalhadores e o conjunto da sociedade, como mostram fatos amplamente divulgados no noticiário. Antes de ser exceção, a prática é, entretanto, habitual em boa parte das empresas, em especial entre aquelas comandadas por ardorosos bolsonaristas.

Uma investigação do jornal espanhol El País nos arquivos do Pandora Papers revelou que Hang manteve durante 20 anos uma empresa em um paraíso fiscal no valor de 112,6 milhões de dólares, dinheiro gerado no Brasil e que deveria pagar tributos no País, mas foi ocultado no exterior, longe do alcance da Receita Federal. Esse dinheiro é suficiente para pagar, com sobra, sua dívida acumulada de 168 milhões de reais com a Receita e o INSS, mas o empresário tem 115 anos para saldar o débito. Em uma denúncia criativa, 50 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto fizeram compras em uma loja da Havan em São Paulo, no dia da votação da reforma da Previdência, em 2019, e apresentaram como pagamento um cheque no mesmo valor da dívida tributária e previdenciária de Hang.

Degradação. Os lucros do comércio são majorados com o trabalho instável e mal remunerado. Parte dos operários do setor de eventos vive nas ruas ou em albergues – Imagem: iStockphoto e Redes sociais

Em 2020, a Receita Federal descobriu uma sonegação previdenciária da Havan de quase 2,5 milhões de reais, em valores deflacionados. O calote é semelhante àquele que levou à condenação em segunda instância de Hang pelo mesmo crime, em 2003, quando houve um acordo para pagamento do débito. Em 2008, o bolsonarista recebeu uma pena por corrupção e lavagem de dinheiro. Em 1999, ele e o irmão João Luiz, seu sócio, foram processados por contrabando pela Justiça Federal de Blumenau, em Santa Catarina, segundo apurou o jornal Extra Classe. A empresa não havia declarado 1,5 tonelada de veludo, importado pelo Porto de Itajaí. Foi delatado pelos concorrentes, autuado em 120 milhões de reais pela Receita Federal, mas, em 2000, veio o Refis, de FHC, para regularização extraordinária de débitos com a Receita Federal e o empresário salvou-se do processo penal.

Segundo uma denúncia, Hang pagava uma parte do salário de seus funcionários “por fora”, sem registro em carteira, para burlar o Fisco e reduzir o custo das contribuições à Previdência. No período apurado da fraude, de 1992 a 1999, o “véio da Havan” sonegou mais de 10 milhões de reais, segundo o Ministério Público Federal. Na eleição de 2018, o Ministério Público do Trabalho proibiu o empresário de ameaçar de demissão os funcionários que não votassem em Bolsonaro e estabeleceu multa de 500 mil reais em caso de reincidência. Não é o único do gênero. Tissot, o maior acionista do grupo comercial Sierra Móveis, foi acionado pela Justiça por causa da mesma prática.

Os setores têxtil, de comércio e construção, das empresas envolvidas, tendem a pagar salários mais baixos

Outro exemplo significativo de atitudes frequentes entre os integrantes do grupo investigado pelo STF é o da rede de restaurantes Coco Bambu. A empresa é acusada de violar a suspensão de contratos na pandemia e demitir 20% dos funcionários com pagamento apenas parcial do valor da rescisão, praticar jornadas de trabalho de até 12 horas diárias, discriminar mulheres na contratação para estágio, sonegar impostos e humilhar funcionários convocados a puxar palavras de ordem laudatórias à companhia, na inauguração de lojas. Foi notificada pela vigilância sanitária do Piauí por fornecer ­pizza com baratas na embalagem e condenada a indenizar uma mãe de criança autista por constrangimento, em São Bernardo do Campo. “A humilhação de funcionários e a pressão para votarem em Bolsonaro, praticadas pelo dono da Coco Bambu, expressa uma visão de mundo desse grupo, um tipo de lógica de negócios associada àquela própria de crimes. Fazem parte de um coletivo que pensa o mundo desse modo em relação ao Estado, aos trabalhadores e ao papel do governo”, sublinha Ganz Lúcio. “São empresários mais que liberais, fascistoides, no sentido de quererem mesmo estourar os trabalhadores. É uma coisa comum a eles, a insensibilidade social”, ressalta Krein.

Uma evidência dos extremos da degradação imposta por ao menos parte das empresas do setor de serviços são alguns relatos de moradores de rua reunidos na quinta-feira 18 em São Paulo, com dirigentes sindicais, por iniciativa do padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua. O encontro fez parte das atividades do programa de enfrentamento do ódio aos pobres, difuso na sociedade e que aparece em intervenções urbanas das prefeituras para dificultar o abrigo sob viadutos, marquises e outros locais públicos. “O que pude perceber é que há uma imensa dificuldade para eles conseguirem emprego formal, devido a não terem residência fixa. Quando as empresas veem que eles moram em albergues, não são aceitos. Outra reclamação constante é que são ‘contratados’ para a montagem de grandes eventos, como ­Fórmula 1, Réveillon, Lolapalooza e outros, por salários irrisórios e sem condições adequadas de trabalho. Chegam a trabalhar 12 horas para receber apenas 50 reais”, relata Paulo Pedrini, professor de História e integrante da Pastoral Operária, que participou do encontro. Cerca de 40% da população moradora de rua em São Paulo, estimada em cerca de 35 mil indivíduos, coleta materiais recicláveis e menos de 5% trabalha para empresas do setor de serviços, em uma relação marcada por péssima remuneração, informalidade e instabilidade. “Os empresários golpistas”, resume Krein, “não querem legislação trabalhista nem instituições públicas do trabalho. Pretendem um poder absoluto da empresa na determinação da relação de emprego, anseiam pelo mesmo mercado de trabalho que Bolsonaro defende, próximo da informalidade, ou seja, sem direitos e sem proteção social.  Em suas propostas, transparece um modelo de País com exploração do trabalho de forma mais intensa e grande miséria.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A vanguarda do atraso “

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