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Se quiser voltar a crescer, o Brasil precisa reformar a reforma trabalhista

As mudanças de 2017 esculpiram o desastre econômico e social. O País precisará de novas regras

O trabalho precário derrubou a renda dos brasileiros. A Espanha de Sánchez revogou a legislação neoliberal. Lula fará o mesmo? – Imagem: Nelson Almeida/AFP e Ricardo Stuckert
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Apesar do retorno ao mercado de trabalho, no ano passado, de 8,7 milhões de brasileiros que haviam perdido a ocupação desde o início da pandemia, o salário médio no terceiro trimestre de 2021, em vez de subir, caiu 11% em relação àquele do mesmo período de 2020. Por sua vez, a massa salarial, de 225 bilhões de reais, “não teve variações estatisticamente significativas”, segundo a Pnad Contínua divulgada pelo IBGE. Os dados da pesquisa deixam evidente o colossal arrocho salarial provocado, em boa medida, pela reforma trabalhista implantada no governo Michel Temer em 2017 e aprofundada por Bolsonaro, que retirou direitos, asfixiou os sindicatos e travou o mercado consumidor. “É brutal a queda da massa salarial. Você coloca mais 8,7 milhões a trabalhar e a massa salarial cai, pois o volume daqueles que estão vindo para o mercado de trabalho não é suficiente para compensar o arrocho provocado em grande parte pela rotatividade”, dispara o sociólogo Clemente Ganz Lúcio, Assessor do Fórum das Centrais Sindicais.

No centro da discussão política desde que Lula prometeu rever vários pontos caso vença as eleições, a reforma trabalhista será decisiva também para mudar o rumo da economia. O Brasil é o segundo país com a maior proporção de trabalho informal no mundo, atrás só da Colômbia, segundo a OCDE, e deverá voltar ao número astronômico de 14 milhões de desempregados neste ano, conforme previsão da OIT. O País deverá ter ainda a terceira pior taxa de expansão do PIB, de acordo com estimativa da ONU, e caiu da terceira posição, em 2013, para a décima colocação no levantamento de preferência de investimentos entre presidentes de empresas mundiais organizado pela consultoria PwC. Com a campanha presidencial, os debates sobre a reforma tendem a esquentar. Pouco depois de Lula e as centrais sindicais proporem a revogação ou revisão da reforma aprovada em 2017, Bolsonaro saiu em sua defesa, assim como o seu criador, o ex-presidente Temer.

SOMOS O SEGUNDO PAÍS COM A MAIOR PROPORÇÃO DE TRABALHO INFORMAL NO MUNDO

Defendida por empresários e pela mídia e criticada por Lula e o PT, a reforma trabalhista significou um retrocesso profundo nas relações entre o capital e o trabalho, precarizou o emprego e fragilizou os sindicatos de forma inédita, com uma regressão para padrões anteriores à Segunda Guerra Mundial. Outro efeito danoso foi achatar o gasto das famílias, responsável por dois terços do Produto Interno Bruto, uma trava para qualquer tentativa de reaquecimento nos marcos da política econômica atual.

Lançada com a promessa do então ministro da Fazenda Henrique Meirelles de que iria gerar 6 milhões de novos empregos, a reforma não impediu a alta do desemprego de 12,5 milhões de indivíduos em 2017 para cerca de 14 milhões, ampliou a informalidade de 42 milhões naquele ano para 45 milhões de trabalhadores, quase metade do total da população ocupada, e reduziu em 1 milhão o número de trabalhadores formais, documentam dados do IBGE.

Os trabalhadores do setor de serviços, com maiores dificuldades de organização, estão entre os principais prejudicados – Imagem: iStockphoto

Os estragos da reforma trabalhista espalharam-se da esfera do trabalho para o conjunto da economia, em completa contradição com o que prometiam seus defensores, que acenavam com a ampliação das vagas possibilitada, segundo eles, pela redução do custo da mão de obra e ainda com a elevação da produtividade. O economista Marcelo Manzano, do Instituto de Economia da Unicamp, concluiu no estudo intitulado ‘Impactos Econômicos da Reforma Trabalhista’, que, além de ineficaz para impulsionar o nível de atividade econômica, ela causa efeito reverso, isto é, está relacionada às baixas taxas de investimento produtivo, ao estancamento da produtividade do trabalho, à perda de competitividade externa, à desmobilização dos estabilizadores automáticos dos sistemas públicos de proteção social e à redução generalizada da propensão ao consumo.

O central, do ponto de vista macroeconômico da formação da demanda, ressalta Ganz Lúcio, é que a predominância do surgimento de empregos precários, portanto, com baixa remuneração, combinada a um processo de queda nos salários, tanto porque os sindicatos perdem força quanto por causa da corrosão provocada pela inflação, acelerada no último ano, tem um efeito relevante. A ­disputa salarial é afetada pelo desemprego, que desestimula os trabalhadores a travar lutas porque eles sabem que não adianta fazer uma greve se a empresa está quebrada e se há inúmeros desempregados na ­disputa por uma colocação. Isso tudo gerou uma adversidade muito grande que, com a pandemia, aumentou ainda mais.

O que se viu no ano passado, sublinha o assessor sindical, é que, apesar de o País ter recuperado parte do dinamismo econômico perdido no primeiro ano de pandemia e da previsão do governo de que a queda seria seguida de retomada, quando o ministro Paulo Guedes chegou a vaticinar que o País ia “bombar”, o que ocorreu foi bem diferente e hoje há uma estagnação à beira de uma recessão. Isso está associado, em parte, a uma queda estrutural na massa de salários.

À injustiça histórica da defasagem salarial soma-se a injúria da reforma administrativa – Imagem: ASFOC/Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz

Apoiada pelo conjunto do empresariado, a reforma de Temer encontra seus defensores mais fervorosos naqueles setores que empregam grandes contingentes de trabalhadores mal remunerados e desorganizados do ponto de vista sindical, justo os que mais perderam com a mudança. “De longe, entre as categorias mais prejudicadas com a precarização de contratos da reforma trabalhista e o aumento da rotatividade estão as do setor de turismo e hospitalidade, que reúne trabalhadores em bares, restaurantes, limpeza de prédios e segurança, que abrange categorias como vigilantes, vendedores de lojas e pessoal de limpeza, segmentos mais dispersos e de organização mais difícil, o que repercute nos reajustes. Cerca de 80% dessas categorias tiveram perdas salariais em 2021”, observa Luís Ribeiro, técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, o Dieese. A situação desse contingente só não é mais grave do que aquela dos trabalhadores por aplicativos e domésticas, sem acordo trabalhista, por conta própria. Eles não negociam reajuste, estão totalmente reféns. “A reforma trabalhista incentivou essas novas formas de contratação, muito mais precárias. Um dos objetivos da reforma foi tirar os sindicatos da jogada”, acrescenta Ribeiro.

Segundo o economista José Dari Krein, do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp, a reforma trabalhista tem em comum com as reformulações regressivas implantadas em vários outros países, uma enorme pressão para: 1. Ampliar as formas de contratação flexíveis. 2. Despadronizar a regulamentação do uso do tempo de trabalho construída historicamente. 3. Avançar na remuneração variável e nas formas de pagamento por verbas não salariais. 4. Individualizar a definição das regras na empresa até o ponto de o empregado negociar diretamente com o empregador. 5. Fragilizar as instituições públicas e os sindicatos. 6. Reduzir as políticas de proteção dos assalariados com reformas no sistema previdenciário, na saúde e segurança do trabalho e no seguro-desemprego. “A partir dos anos 1970, o capitalismo global voltou ao seu leito natural no sentido de impor uma ordem regulada pelo mercado, em que o capital e as finanças têm liberdade de movimentação, fugindo das regulamentações estabelecidas no pós-Guerra”, destaca.

As regulamentações do pós-Guerra constituíram o chamado capitalismo contratual, que vigorou entre 1950 e 1973 e foi analisado, entre outros, pelo economista Michel Aglietta, professor da Universidade de Paris. O capitalismo contratual é assim chamado, diz Aglietta, porque superou o persistente subemprego involuntário que prevaleceu no período entreguerras, por meio de instituições de mediação da relação salarial, negociação coletiva e modelos de proteção social, e ainda por meio da estrita regulação das finanças e do sistema monetário internacional de Bretton Woods, o que permitiu uma ampla autonomia das políticas monetárias nacionais no quadro das taxas de câmbio fixas e ajustáveis.

A dupla vendeu a ilusão de 6 milhões de empregos – Imagem: Beto Barata

A negociação coletiva foi uma instituição predominante para regular o crescimento salarial em relação ao progresso na produtividade do trabalho. Aglietta indica a importância entre a organização e as instituições do trabalho e o bom funcionamento da economia: “Os contratos coletivos de médio prazo permitiram o aumento do consumo em massa, o que deu às empresas previsibilidade de antecipar sua demanda efetiva e alinhar o acúmulo de capital produtivo com as aspirações dos empregados”. A partir de 1973, esse arcabouço de regulação da relação capital-trabalho foi desmontado com reformas trabalhistas regressivas em vários países.

Citada como exemplo por Lula, a reforma aprovada em dezembro pelo governo Pedro Sánchez, do Partido Socialista Obrero Español, na forma de decreto a ser referendado pelo Parlamento, foi negociada entre trabalhadores, governo e empresários e visa atacar o problema do alto desemprego, em especial entre os jovens, um dos maiores índices de desigualdade da Europa e a precarização das condições de trabalho. A proposta busca substituir as normas trabalhistas e de relações de trabalho adotadas pelo governo conservador do então premier ­Mariano Rajoy, em 2012. Do mesmo modo que a reforma de Temer, a reformulação de Rajoy prometia aumentar o emprego.

UM DOS OBJETIVOS DA REFORMA FOI ENFRAQUECER OS SINDICATOS

Referência também para as centrais sindicais e outros partidos progressistas do Brasil, a reforma espanhola prevê o fortalecimento dos gastos sociais em educação e saúde, a criação de um programa de renda mínima inspirado no Bolsa Família e um aumento real do salário mínimo de 60% até 2023. Estabelece ainda a limitação do uso de contratos de curta duração, o estímulo aos contratos por tempo indefinido, investimentos em um programa de qualificação profissional e ampliação do acesso aos programas de preservação de empregos criados para o combate à pandemia.

A Coreia do Sul foi submetida a uma reforma de retirada de direitos nos moldes da implantada no Brasil por Temer, no período da agenda neoliberal mais radical, de 1993 a 1998. A partir de 2017, teve início uma virada, com a retomada dos direitos suprimidos. “Foi uma agenda imposta pelo FMI e EUA com a ideia de preparar a entrada do país na OCDE. O resultado foi a crise de 1997. Com o crescimento da pobreza, a partir de 1998, retomou-se um maior ativismo do Estado e houve um rompimento com a agenda neoliberal”, destaca o economista Uallace Moreira, professor-visitante na South ­National University, da Coreia do Sul, e professor-adjunto da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia.

Na Coreia do Sul, a nova legislação trabalhista reduziu a jornada, mas manteve os salários – Imagem: ILO-ASIA

Sob a reforma que suprimiu direitos, diz, o porcentual de trabalhadores autônomos chegou a 40%, com elevado nível de precarização e queda de renda, e o problema da Previdência agravou-se. “Mesmo com a retomada dos direitos trabalhistas, a partir de 2017, a taxa de desemprego na Coreia caiu. Ou seja, direitos trabalhistas não impedem a geração de empregos, como aconteceu no Brasil durante os governos do PT”, afirma Moreira. O país, lembra, tinha uma taxa de desemprego de 4,5% no início da pandemia, agora ela está em 2,6%.

As normas vigentes limitam a subcontratação, estabelecem a responsabilização dos empregadores principais e ­preveem punições se forem culpados por acidentes graves. O presidente Moon Jae-in comprometeu-se a ratificar as convenções fundamentais da OIT para criar “uma sociedade que respeite o trabalho”. Uma série de direitos dos trabalhadores formais foi estendida aos intermitentes, subocupados e parciais, inclusive aposentadoria. Destaca-se a política de valorização do salário mínimo, que aumentou 36,4% de 2017 a 2020, acima da média de 16,4% nos países da OCDE. Os salários médios cresceram 6,2% entre 2016 e 2018, o mesmo que nos sete anos anteriores somados. “É sintomático que, na Coreia do Sul, em 2018, a participação dos salários no PIB tenha crescido 1,5 ponto porcentual e atingido 61%, o maior nível desde 2009”, sublinha Moreira. Outra medida foi a redução da jornada de trabalho, de 62 horas para 52 horas semanais, sem diminuição dos salários. No setor público, contratos por tempo determinado foram substituídos por contratos por tempo indeterminado, com direitos trabalhistas.

A COREIA DO SUL REVOGOU AS LEIS NEOLIBERAIS. RENDA E EMPREGO NÃO PARAM DE CRESCER

Nos Estados Unidos, o governo Joe Biden iniciou um processo de mudanças nas leis que regularam as relações de trabalho e a organização sindical na gestão de Donald Trump, no sentido de aumentar os direitos e o poder de reivindicação dos trabalhadores. As modificações incluem o aumento das exigências para a classificação dos empregados como independentes em vez de contratados, punições adicionais para o descumprimento das normas e o aumento da fiscalização e do número de funcionários dedicados a essa atividade. Biden defende o projeto de lei que garante maior proteção ao direito de se organizar, com sanções financeiras às empresas que interferirem na organização sindical e responsabilização ­pessoal dos executivos que agirem nesse sentido. O projeto foi aprovado na Câmara e aguarda a apreciação do Senado. O governo pretende ainda mudar aspectos da legislação que dificultam a capacidade dos trabalhadores de buscar salários mais altos, melhores benefícios e condições. A proposta de orçamento para este ano inclui, além de gastos para a geração de empregos e auxílio às famílias de baixa e média renda, aumento de financiamento para o Departamento do Trabalho, o Conselho Nacional de Relações Trabalhistas e a Comissão de Oportunidades Iguais de Emprego, a fim de garantir que “os trabalhadores sejam tratados com dignidade e respeito no local de trabalho”.

A combinação de estagnação, política econômica recessiva, retração da renda e insegurança crescente quanto às perspectivas político-institucionais do Brasil provocou a saída em massa de empresas estrangeiras e aumento do problema do desemprego e das ocupações menos qualificadas, mostra o caso exemplar da Ford. “O fechamento da montadora em Camaçari, na Bahia, implica o encerramento das atividades de 30 outras empresas e a perda de 120 mil empregos. O trabalhador sai da Ford recebendo 5 mil reais e vai ganhar 2 mil ­reais fazendo qualquer outra coisa. Imagine como está o arrocho salarial dessa massa em torno da Ford”, diz Ganz Lúcio.

Os entregadores de aplicativos se mobilizam. Os trabalhadores da Ford foram largados na beira da estrada – Imagem: Walmir Cirne/Agif/AFP e Renato Luiz Ferreira

O aprofundamento incessante das desigualdades e as limitações da condução da economia a partir das diretrizes ortodoxas estão na origem de um aumento das mobilizações no mundo. Trabalhadores dos Estados Unidos realizaram 250 greves no ano passado. Segundo o Nobel de Economia Lawrence ­Summers, os sindicatos devem fazer parte da agenda nacional e os EUA precisam deles mais que nunca, pois o poder declinante dos trabalhadores está diretamente associado ao mau desempenho recente da economia do país.

A mobilização dos entregadores por aplicativo cresce com greves no Brasil e na Europa e a categoria obteve na Espanha o primeiro acordo coletivo, que prevê alguns benefícios concedidos apenas a trabalhadores formais. A China passou na frente de países do Ocidente ao obrigar as empresas de aplicativos de entrega a pagar mais que o salário mínimo e garantir seguros e descanso aos entregadores. No Brasil, funcionários públicos de mais de 40 categorias protestaram na terça-feira 18 em busca de reajustes. A disputa entre capital e trabalho há muito tempo não ficava tão explícita. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A reforma da reforma”

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