Diversidade

Uma reflexão sobre torres de igualdade da Igreja do Rosário dos Pretos

Marco arquitetônico de Salvador conta um pouco da história do negro no país

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Sabemos que no Brasil, país de formação social acentuadamente católica, a religião foi o elemento primordial que dominou todos os aspectos do “encontro” entre a cultura negra africana e a cultura branca europeia.

Uma das formas de socialização que o negro, escravizado ou liberto, vivenciou foi a participação ativa em irmandades religiosas católicas. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos às Portas do Carmo, em Salvador, foi uma das primeiras confrarias negras criadas no Brasil. Exerceu grande influência, bem como serviu como base de apoio para os negros, libertos ou escravizados, que lutavam contra o sistema escravocrata brasileiro. Graças à sua organização e à resistência constantes, conseguiram comprar a liberdade de muitos escravizados na Bahia.

Durante os séculos XVIII e XIX, os negros batalharam para edificar, aprimorar e manter sua capela, que fora construída durante suas horas vagas, ao longo de quase um século.

A fachada da igreja, inspirada no primeiro movimento barroco português, possui construção em alvenaria de pedra com cantaria de arenito nos cunhais, cercaduras de vãos, ladeada por duas torres. É um dos mais belos exemplos de igrejas barrocas da Bahia. Tais beleza e esplendor são o resultado de muito trabalho dos negros que por ali passaram. Os artistas. Profissão de vida e de fé.

Algo inédito dentro de uma sociedade escravista é o fato de uma Irmandade Negra possuir uma capela com duas torres, fato este que revela sua força, sua capacidade de organização e seu sustento econômico, baseado em laços de solidariedade.  Uma vez que muitas igrejas da época não conseguiam sequer completar a construção, em razão das dificuldades econômicas e dos altos impostos cobrados pela Coroa, o êxito da finalização da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, com duas torres, signo de ostentação de poder econômico e de importância, dado o alto custo da obra para o padrão da época, simboliza a resistência, a persistência e o atingimento de um padrão de igualdade em relação aos demais templos de brancos ricos.

O contexto histórico que reveste a construção artística de sobrevivência da cultura negra sob o templo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos demonstra a resistência e a luta de negros escravizados. Trata-se de uma história de êxito, de alcance do objetivo traçado pelas mãos pretas dos escravizados artistas, com sacrifício do seu repouso em prol de um fim comum, coletivo. A Igreja em comento, como arte plástica e como templo, foi feita em função do trabalho como escravizados e com a intencionalidade de ter um santuário próprio, simbólico do respeito religioso e social, como inserção na sociedade desigual e discriminatória.

É fruto e ressonância do trabalho sob condição desumana, como dor e atribulação, e também resultado do labor artístico original, ínsito, talentoso, que possibilitou a finalização de uma obra arquitetônica, religiosa, social e econômica. Percebe-se a engenhosidade negra na elaboração de um trilhar idôneo a proporcionar o trânsito entre as camadas sociais, com o escopo de ascender religiosa e socialmente, manter tradições culturais, penetrar, criar, agir, fabricar, construir, contemplar.

Não são desconhecidas as dificuldades de se atingir, hodiernamente, o desiderato simbolizado pela construção das duas torres da referida Igreja. Ainda se verifica a imprescindibilidade de traçar claramente um projeto de integração, promoção e de igualização dos negros, não apenas por meio da atuação talentosa das mãos pretas e artistas, com sacrifício do seu repouso em prol de um fim comum, coletivo.

São requisitadas, hoje, inúmeras mãos, com a diversidade necessária para mitigar e eliminar o processo de produção do racismo na convivência social, a fim de superar a postura, definida por Frantz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas, de “enclausurar-se na Torre substancializada do passado”. Tal superação é essencial para a construção de novas torres que demonstrem a força, a capacidade de organização e o sustento econômico dos negros, baseados em laços de solidariedade, imprescindível para um futuro antirracista.

As reflexões abordadas neste texto foram inspiradas por artigo sobre direito e artes plásticas publicado pelos autores na obra Pluralidades do Sentir: Artes Plásticas, Dança e Teatro no Direito Brasileiro, organizada por Ezilda Melo e Marco Aurélio Serau Junior.

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