de La Paz
“Se há algum candidato ou governante nos ouvindo, quero dizer em alto e bom som: vão à merda.” A frase de María Galindo, ativista lésbica pioneira na Bolívia, pode soar exagerada, mas resume bem os anseios da população LGBT+ no país.
Depois de uma década e meia, os avanços políticos e sociais dos anos de Evo Morales no poder pouco refletiram na vida cotidiana da comunidade.
CartaCapital esteve com ativistas LGBTs que se reuniram para discutir: há liberdade sexual na Bolívia? As conclusões ajudam a entender que, embora as dores sejam universais, a luta por igualdade e direitos é diferente em cada país.
Se no Brasil, a vitória de Jair Bolsonaro fez crescer a sensação de que há um movimento institucional para reverter as conquistas em relação aos direitos e aceitação social, a Bolívia vive um tipo mais silencioso de homofobia: há proteção na lei, mas não nas ruas. Casais do mesmo sexo circulando nas ruas de mãos dadas ainda são mal vistos, mesmo em cidades cosmopolitas como La Paz e Santa Cruz de la Sierra. Beijo, dificilmente. Demonstrações de carinho ficam restritas à vida noturna.
“Ninguém quer andar comigo porque sou maricón, porque logo de cara sabem que sou gay. Perdi até namorados por conta disso”, lamenta o pacenho Paris Galán, primeiro homossexual assumido na política boliviana. O preconceito também lhe trouxe prejuízo profissional e financeiro. Eleito há quatro anos para a assembleia regional de La Paz, Galán só foi empossado há dois meses. Ficará menos de um ano no cargo. “Desde aquela época luto para que me reconheçam.”
Preconceito enraizado
Um teoria popular atribui essa rejeição aos valores indígenas — a homossexualidade, segundo essa tese, não faria parte da cultura nativa. Um exemplo: a palavra maricón (bicha, em tradução livre) seria herança da colonização espanhola. Não é bem assim: a existência da homossexualidade nas tribos andinas pré-colombianas é fartamente documentada, em vários níveis de aceitação. E se a colonização deu nomes, trouxe também os estereótipos negativos — foi depois da conversão ao cristianismo que o amor entre iguais ganhou status de pecado e passou a ser punido com castigos físicos. Hoje, muitos aymaras e quechua o consideram sinônimo de infidelidade e má sorte.
Em termos legais, porém, a Bolívia teve avanços raros até a países desenvolvidos. Desde 2010, os LGBTs têm respaldo constitucional contra o preconceito — a lei contra o racismo e todas as outras formas de discriminação, no artigo 5ª, inclui explicitamente a orientação sexual e a identidade de gênero. LGBTs podem prestar serviço militar, embora o assunto ainda seja tabu dentro dos quartéis. O casamento e a adoção, porém, ainda são proibidos — a mesma Constituição que condena o preconceito veta expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Há três anos, os homens e mulheres transsexuais do país ganharam o direito de mudar seus documentos. Aquela vitória, porém, perdeu a força depois que o Tribunal Constitucional Plurinacional vetou, entre outros direitos, o casamento e a adoção a eles. A apresentadora Antonella, mulher trans, sente que é cidadã pela metade. “Um país dos sonhos é onde eu simplesmente possa ser eu mesma”, diz.
A posição ambígua do partido de Evo Morales também é alvo de desconfiança. Ao mesmo tempo que abraça certas pautas, o Movimiento al Socialismo (MAS) tem um histórico de vista grossa à homofobia e ao machismo. Em 2014, um deputado chamado Roberto Rojas disse que o país ‘não estava preparado para os homossexuais’. O próprio Evo engrossa essa lista. Em 2010, diante de vinte mil pessoas, o presidente boliviano fez uma estranha relação entre a homossexualidade e o consumo de frango industrial. Segundo ele, a carne avícola do país tinha tantos hormônios femininos que causava aos homens ‘desvios em sua maneira de serem homens’. Cinco anos mais tarde, disse a uma ministra que ‘não queria pensar que ela era lésbica’ porque não estava prestando atenção nele. Criticado mundialmente, ele pediu desculpas por ambas as declarações.
O ministro Manuel Canelas, único abertamente gay no alto-escalão do governo, reconhece que a sociedade boliviana ainda é muito conservadora neste assunto. Mas, em tempos de retrocesso em tantos outros países, celebra o apoio político e institucional. “Não há um movimento para organizar-se em maiorias para limitar os direitos LGBT. Ao contrário, os grandes líderes políticos expressaram apoio a essas demandas. Tanto Evo como os candidatos da oposição.”
Ele reconhece, porém, que falta um conjunto de ações para que os direitos LGBT+ não sejam letra morta na lei. “É preciso que a sociedade se aproprie dela. A chave é unir governo, os políticos, e os ativistas para que esses avanços legais virem senso comum nas ruas. Porque, se em quatro ou cinco anos, um projeto anti-LGBT vira bandeira da oposição, será muito fácil retroceder.”
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