Diversidade

A transfobia cotidiana da mídia brasileira

Reportagens do Fantástico e O Globo fazem coro com ódio que mata população trans

Projeto em SP oferece 50 bolsas para transsexuais cursarem ensino superior. (Foto: Brasil de Fato/ Reprodução)
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Como espaço central na formação de valores, ideias e opiniões, cabe aos meios de comunicação, dentre outras coisas, colaborar na difusão de informações e conhecimentos que, ao longo da história, foram invisibilizados.

Essa, infelizmente, não foi a opção da Rede Globo, no último domingo, ao exibir no Fantástico uma reportagem sobre “o segredo de Lourival”. Ao contrário, a opção da emissora foi ampliar a desinformação e reforçar estigmas, estereótipos e preconceitos já existentes contra a população transexual.

Nos pouco mais de oito minutos da reportagem sobre Lourival Bezerra de Sá, de 78 anos, expressões como identidade de gênero, transexual e transexualidade não foram sequer citadas. O caminho escolhido, a partir da estratégia de seleção de fontes e dos recursos de edição, foi o de conferir um tom sensacionalista ao tema.

Mas um sensacionalismo sutil, sofisticado, apontado por Márcia Amaral, no livro Jornalismo Popular, de 2006, como “ligado à valorização da emoção; à exploração do extraordinário, à valorização de conteúdos descontextualizados; à troca do essencial pelo supérfluo ou pitoresco e inversão de conteúdo pela forma”.

Um dos entrevistados na reportagem foi, por exemplo, um médico legista que, além de tratar Lourival por “ela”, numa evidente demonstração de desrespeito a sua identidade de gênero, disse: “uma pessoa era identificada como do sexo masculino, mas no atendimento já foi constatado que era uma pessoa do sexo feminino. Nunca tive um caso parecido”.

Se era necessário ouvir um médico, por que a Globo, sem precisar ir longe, não entrevistou, por exemplo, Dráuzio Varella, que, inclusive, tem um quadro semanal sobre saúde no próprio Fantástico? A respeito do assunto, em artigo na Folha de S. Paulo, em junho de 2016, Varella escreveu que há uma falta de conhecimento dos seus colegas médicos para trabalhar com as questões relacionadas às identidades de gênero e que, além desse despreparo, “o preconceito, a discriminação e a má vontade dos profissionais intimidam e afastam mulheres e homens trans dos serviços de saúde”, gerando problemas como ansiedade, depressão, abuso de drogas e altas taxas de suicídio.

No mesmo artigo, Varella afirma que a transexualidade é uma “simples manifestação da diversidade humana” e que “a estupidez agressiva da sociedade causará muito sofrimento aos que não se enquadram nos modelos culturais previstos no binário masculino-feminino”.

A estupidez agressiva a que se refere Dráuzio Varella encontrou terreno fértil no Fantástico, que – colocando o tema da transexualidade na pauta policial e não de direitos humanos – escolheu como fonte principal, com mais tempo de voz na reportagem, uma delegada de polícia que, além de também se referir a Lourival por “ela”, chegou a afirmar que, caso a investigação não seja solucionada, Lourival – um ser humano, com família e história de vida, vítima de morte súbita – pode ser enterrado como indigente.

Com um tom dramático e apelativo, a Rede Globo optou por abordar a transexualidade como uma patologia grave que tem como consequências a infelicidade de familiares e pessoas próximas a transexuais, ignorando, por exemplo, o fato que, em junho de 2018, a Organização Mundial de Saúde retirou a transexualidade do grupo de “transtornos mentais, comportamentais ou do neurodesenvolvimento” na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

Desse modo, a Globo legitima o ódio que diariamente vitimiza travestis e transexuais no Brasil. Alguns dados demonstram isso: pesquisa do Grupo Gay da Bahia, que realiza a iniciativa há quase 40 anos, identificou que 168 transexuais foram mortas/os em 2018.

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Levantamento semelhante, mas em âmbito internacional, o projeto Trans Murder Monitoring contabilizou que, no ano passado, 45% das mortes de transexuais em todo o mundo aconteceram no Brasil, sendo a maioria de mulheres negras trabalhadoras da prostituição, evidenciando o entrelaçamento entre os componentes de gênero, raça e classe nos alvos do ódio.

E o uso do termo “ódio” está longe de ser exagero. Ou já esquecemos que em 21 de janeiro desse ano, em Campinas, uma travesti – conhecida como Kelly – foi assassinada e teve o seu coração arrancado, com a imagem de uma santa colocada no local onde deveria estar o órgão vital?

Vale destacar aqui que a abordagem do Fantástico guarda semelhanças com o tom criminalizador de uma reportagem do jornal O Globo, de 7 de janeiro deste ano, em que culpabiliza Matheusa Passarelli pela sua própria execução, em maio de 2018, tratando o caso como uma fatalidade resultante de um suposto “estado de surto” da vítima.

Em nota intitulada “A sanidade de Matheusa Passarelli contra o transtorno midiático”, professoras e professores do Instituto de Artes da UERJ, onde Matheusa estudou por quatro anos, denunciaram que a reportagem do O Globo é significativa da “perversão midiática que acusa a própria vítima do crime por ela sofrido” e que o tratamento do jornal a Matheusa é “uma violência midiática que a torna um objeto de manipulação da realidade dos fatos”.

Além dos aspectos já ressaltados, a extrema violação de direitos expressa nas reportagens do O Globo e do Fantástico adquire um caráter simbólico perverso na medida em que foram veiculadas próximo ao Dia Nacional da Visibilidade Trans, celebrado anualmente em 29 de janeiro, um importante momento de discussão qualificada sobre os direitos e realidade da população trans no país.

No sentido de abordar a relação entre meios de comunicação e direitos humanos, existem diversas experiências de materiais que ajudam na produção de conteúdos relacionados a segmentos vulnerabilizados. Um desses é o Guia Mídia e Direitos Humanos, produzido pelo Intervozes, que apresenta inúmeras sugestões para uma cobertura respeitosa e que não viole direitos, como: ouvir de quem se fala, dando voz a pessoas, especialistas e movimentos organizados que representam as populações que são tema do conteúdo; dar espaço para opiniões divergentes; qualificar as informações que subsidiam a reportagem, com dados e pesquisas que ajudem a desconstruir ideias pautadas no senso comum; atentar para a linguagem utilizada, entendendo que os termos carregam significados históricos; observar e utilizar a legislação que versa sobre os direitos dos segmentos retratados.

Nada disso, porém, foi considerado e incorporado pelos veículos do Grupo Globo que, na contramão dos preceitos do jornalismo, preferiram fazer coro com o ódio e a violência que diariamente tentam silenciar a população transexual no Brasil.

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