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Volta agigantada

As Leis Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo fazem com que um MinC em reconstrução lide com o maior volume de recursos da história

“(Sobrevivemos) graças aos nossos servidores e servidoras que resistiram nos últimos anos”, afirmou, em fala emocionada, a ministra Margareth Menezes – Imagem: Tomaz Silva/ABR
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“O Ministério da Cultura voltou.” Ao pronunciar esta frase, durante o lançamento do novo decreto de fomento cultural, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, no dia 23 de março, a ministra Margareth Menezes foi interrompida por uma ovação. Emocionada, disse na sequência: “Àqueles que nos quiseram mortos, pois bem, sobrevivemos”.

O evento de assinatura do decreto, primeiro ato formal de impacto da pasta extinta por Bolsonaro e recriada por Lula, levou cerca de 2 mil pessoas ao suntuoso teatro inaugurado no início do século XX. Os discursos e apresentações artísticas ali reunidos procuraram, em seu conjunto, dar à cultura uma centralidade política. “Estou aqui para dizer que a cultura voltou de verdade ao nosso País”, disse, rapidamente, o presidente que, naquela mesma noite, seria diagnosticado com pneumonia. “Vão dizer que a mamata voltou. Mas, desta vez, vocês não devem ficar quietos. A gente não pode deixar que a pauta de costumes derrote a política cultural neste País.”

Os cem primeiros dias de governo foram marcados, na área cultural, pela volta da simbologia do sonho da “cultura para todos”; pelo restabelecimento das instâncias de participação da sociedade na política cultural; e pela criação de instrumentos destinados a destravar os empecilhos legais e institucionais criados pelo governo anterior.

Márcio Tavares, secretário-executivo da pasta, tenta recuperar funcionários e abrir concurso – Imagem: Redes sociais

Não por acaso, o terceiro nome de destaque no evento do Rio, ao lado do de Lula e Margareth Menezes, foi o de Jorge Messias, advogado-geral da União, cumprimentado pela ministra na sua fala. É que o novo decreto, embora emoldurado festivamente e tratado como a volta do fomento, busca, sobretudo, devolver a segurança jurídica não só aos produtores, mas aos próprios gestores da área. O texto não traz nada de exatamente novo. Mas permite a reorganização do setor.

E aqui é importante que se tenha clareza da dimensão do setor cultural neste momento. O impacto das medidas de isolamento social sobre as atividades artísticas somado aos danos causados pelos ataques bolsonaristas à cultura acabaram fazendo com que, antes da volta do PT ao governo federal, fossem aprovadas, no Congresso Nacional, duas leis que mudam de forma importante o cenário do fomento: a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo.

As duas leis tramitaram envoltas no tema da “emergência cultural” e vão disponibilizar, respectivamente, 3 bilhões de reais (ano a ano, durante cino anos) e 3,8 bilhões de reais. Esses recursos, a serem distribuídos por meio de estados e municípios, vêm do próprio orçamento da União, e dizem respeito, especialmente, a valores antes contingenciados.

Trata-se de uma escala de investimentos inédita. Pela primeira vez, desde que a Lei Rouanet foi criada, no início dos anos 1990, o mecanismo de incentivo fiscal deixará de ser o principal motor do setor. As novas leis também levarão à descentralização de recursos – algo difícil de ser alcançado no mecenato.

“Vão dizer que a mamata voltou, mas, desta vez, vocês não devem ficar quietos”, apregoa o presidente lula

“A gente passa a ter uma estrutura que irriga o Sistema Nacional de Cultura do ponto de vista do financiamento”, diz, em entrevista a CartaCapital, Márcio Tavares, secretário-executivo do MinC. “O desafio da execução é gigantesco e, para isso, instituímos uma assessoria técnica para estados e municípios, com sugestões de minutas, propostas de editais etc. O segundo desafio está nas estruturas. Muitos municípios sequer têm uma Secretaria de Cultura.”

As leis levarão à ampliação significativa do número de produtores e artistas atendidos pelo fomento. Isso implica também novos desafios relativos à prestação de contas – uma sombra que ainda paira sobre a política cultural no País – e ao risco de uso político desses recursos.

“Trata-se da maior oportunidade e também do maior desafio já enfrentado pelo MinC”, diz Alexandre Santini, presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, que também já esteve na pasta. “O MinC está tendo de dar conta da maior execução orçamentária da história ao mesmo tempo que está se reconstruindo.”

O evento de assinatura do decreto de fomento, no Theatro Municipal do Rio, procurou, por meio de discursos, dar à cultura uma centralidade política – Imagem: Casa Civil/PR

Ao ser extinto, o MinC, obviamente, definhou. “A gente chegou num espaço de trabalho que perdeu mais de um terço dos servidores nos últimos quatro anos”, relata Tavares. “Muita gente pediu para ir atuar em outras unidades administrativas e, aqueles que ficaram, passaram por situações muito difíceis. Estamos trazendo alguns servidores de volta, mas vamos precisar de um concurso público.”

Estes cem dias, do lado de dentro das instituições, têm sido de uma reconstrução também do estado de espírito. Ao mesmo tempo que muitos servidores da pasta e das entidades vinculadas pediram para sair, outros tantos ficaram e sofreram diferentes formas de pressão – não apenas do bolsonarismo, mas do próprio meio cultural, que passou a vê-los, ideologicamente, como “suspeitos”.

Não foi, portanto, pouco significativo que Margareth tenha dito, no ­Theatro­ Municipal do Rio, que, se estavam todos ali, é porque houve quem mantivesse as instituições funcionando: “(Sobrevivemos) graças aos nossos servidores e servidoras que resistiram nestes últimos anos”.

O MinC de 2023 se parece em muitas coisas com aquele de 2003, mas, ao menos neste período inicial, no qual o discurso ainda se sobrepõe à prática, tem se mostrado menos afeito aos enfrentamentos – com o mercado de entretenimento e os patrocinadores, por exemplo – e mais empenhado em angariar aliados do que inimigos. •


“Vamos defender a produção brasileira”

O primeiro grande enfrentamento do governo no setor audiovisual deve se dar no processo de regulação das plataformas de streaming

Acima, a série O Senhor dos Anéis, da Amazon Prime – Imagem: Amazon Prime Vídeo

Durante o evento realizado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a ministra Margareth Menezes anunciou 1 bilhão de reais para o setor audiovisual. Esses recursos pertencem ao Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e parte deles contemplará os vencedores de editais lançados ao longo de 2022.

No caso do audiovisual, um setor que, dado o seu tamanho e as particularidades de suas políticas, anda numa trilha paralela às demais áreas da cultura, os primeiros cem dias de governo acabaram por ser, mais que em outras instituições ligadas ao Ministério da Cultura (MinC), de certa continuidade.

A nova cara da política tende, na Ancine, a ser dada aos poucos, a partir das novas nomeações do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual. Segundo Márcio Tavares, secretário-executivo do MinC, a relação do MinC com a agência tem sido, nestes meses, “salutar”.

CartaCapital: Como tem sido a relação com a Ancine?

Márcio Tavares: A gente tem conseguido uma relação bastante salutar com a Ancine. A diretoria está se adequando e buscando instituir uma política próxima da gestão do presidente Lula. A agência, além disso, voltou a participar dos fóruns de audiovisual e vem mantendo um diálogo respeitoso com o setor.

CC: Durante o processo de transição, falou-se na possibilidade de transferência da Ancine do MinC para o Ministério do Desenvolvimento. Esta é uma pauta dentro do governo?

MT: Essa discussão nunca prosperou dentro do governo. Tal debate é inexistente.

CC: O debate mais urgente parece ser a regulação dos serviços de vídeo sob demanda, ainda não incorporados ao arcabouço legal específico do audiovisual. Como o governo está lidando com o tema?

MT: Esse debate é central para nós e devemos, no caso do VoD (Video on Demand, do inglês), manter a toada do nosso discurso para a área cultural como um todo, pois precisamos de uma legislação que valorize a produção brasileira. O grande desafio é equacionar um mercado consumidor amplo com a produção.

CC: O que o senhor quer dizer com isso?

MT: Que é preciso haver investimento em produção e conteúdo nacional proporcional ao tamanho do mercado brasileiro. O investimento das plataformas não é condizente com o retorno que nosso mercado dá para as empresas. O mercado favorece as plataformas, mas não ajuda o mercado brasileiro a crescer

CC: O governo vai defender a cota para a produção brasileira no streaming?

MT: Sim. Vamos defender a produção brasileira no ­streaming. Nosso desejo é ter maior produção e dar maior visibilidade para a produção nacional nas plataformas.

CC: O governo deve preparar novo Projeto de Lei sobre o assunto ou seguirá com os dois projetos em tramitação no Congresso Nacional?

MT: Um novo Projeto de Lei é uma alternativa, mas tanto o projeto do senador Humberto Costa quanto o do deputado Paulo Teixeira (ambos do PT)têm aspectos interessantes. Faremos esse trabalho em diálogo com as plataformas, até porque queremos um modelo que garanta também que essas plataformas prosperem e, com isso, invistam no País.

CC: Está em discussão a criação de uma plataforma pública de streaming?

MT: Sim, está.

CC: A cultura como um todo, mas o setor audiovisual em particular, é um terreno de ­disputas, no qual diferentes visões a respeito de cinema se manifestam e no qual nomes estabelecidos e iniciantes se enfrentam na luta por recursos. Como essas disputas têm se dado neste momento?

MT: Não definiria como disputas. O setor está se complexificando, e sabemos que não é mais possível pensar em políticas públicas descoladas de ações afirmativas. A gente, na cultura, tem de atuar como um modelador das desigualdades. Devemos contemplar todos, mas ter um olhar para os mais vulneráveis. Hoje, o setor tem menos disputas do que já teve.

CC: O trauma com o governo Bolsonaro teve um papel nisso?

MT: Acho que sim. O que passamos levou o setor a uma convergência maior. Não é que se tenha deixado de cobrar, mas a retomada do MinC tem sido, sobretudo, muito bonita.

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Volta agigantada’

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