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Vidas negras importam

Uma mostra realizada pelo IMS revela o diretor norte-americano Billy Woodberry, ignorado pelos cinéfilos

Forma. Woodberry (abaixo) liderou o movimento L.A.Rebellion, nos anos 1970, e dirigiu filmes como E Quando Eu Morrer, Não Ficarei Morto (2015) e Abençoe Seus Pequeninos Corações (1983) – Imagem: Billy Woodberry/Milestone Films & Video, Joana Linda e Jerry Stoll
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Muitos cinéfilos, incluindo os mais bem informados entre eles, farão cara de paisagem se alguém perguntar se conhecem os filmes de Billy Woodberry.

O diretor norte-americano é um dos líderes do L.A. Rebellion, movimento formado por estudantes negros e não brancos que estudavam cinema na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos anos 1970. Sua obra curta e intensa segue, porém, ignorada pelo cânone, que gera listas e listas de melhores filmes, repetindo visões uniformes enquanto mantém outros modos de ver na penumbra.

Na semana passada, Woodberry, que tem 73 anos e nasceu em Dallas, esteve no Brasil para participar da abertura da mostra que o Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista dedica a ele. A mostra, em cartaz até 30 de junho, permite descobrir um cineasta cuja atenção às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver.

A mostra reúne os dois longas e três curtas-metragens dirigidos por ­Woodberry ao longo de sua carreira e expande a compreensão de suas influências e interlocuções com dois outros blocos na programação.

Uma seleção reúne quatro títulos realizados por companheiros, como ­Haile Gerima e Charles Burnett, em que ele participa como narrador ou ator. A outra é composta por sete curtas de épocas distintas e origens diversas, filmes com que o diretor teve contato durante seus anos de formação e alimentaram nele o desejo de começar a fazer cinema.

O Carroceiro, realizado em 1963 por Ousmane Sembene, pioneiro do cinema africano, e Couro de Gato, um registro lírico do cotidiano de meninos de rua feito por Joaquim Pedro de Andrade para o filme coletivo Cinco Vezes Favela (1962) são alguns dos títulos escolhidos que deixaram marcas nítidas no cinema de realizador.

O curta A Bolsa (1980), de ­Woodberry, que reúne três instantâneos no cotidiano de um garoto negro, deixa clara tanto a inspiração colhida no cinema neorrealista italiano quanto no título de Joaquim Pedro. A perambulação de um grupo de meninos, a tentativa de roubar uma senhora e um diálogo pleno de aprendizados compõem uma ficção na qual Woodberry nunca perde de vista o horizonte documental. A fotografia em um preto e branco áspero acentua os contrastes, revelando um diretor em busca de formas que dizem mais que a temática.

A atenção do cineasta às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver

Este olhar mais preocupado com os fios do que com a trama alcança um resultado valioso no longa-metragem Abençoe Seus Pequeninos Corações, de 1983. Esta ficção intimista em torno do cotidiano de uma família negra é narrada a partir da perspectiva do pai. Charlie é uma versão crescida do pequeno protagonista de A Bolsa, refém de um mundo que não oferece escolhas.

O drama social se desdobra em pequenos dramas familiares, que revelam a conversão dos afetos em intransigências, a condenação a papéis e funções sendo reproduzida entre o homem e a mulher, entre pais e filhos.

A fase mais recente da filmografia de Woodberry reafirma a singularidade de sua abordagem da vida dos negros. O longa-metragem E Quando Eu Morrer, Não Ficarei Morto (2015) esboça um procedimento narrativo que se torna mais elaborado nos dois curtas que se sucedem a ele.

O retrato do poeta beatnik Bob ­Kaufman, um perseguido político que adotou o silêncio como forma de protesto, desafia as convenções do documentário biográfico. As faces do personagem são reveladas menos por meio das entrevistas que do emaranhado musical e sonoro que Woodberry estende sob as imagens.

O recurso de pontilhismo sonoro produz resultados ainda mais espetaculares em Marseille Après la Guerre (2016), sobre o trabalho de estivadores do porto francês, e em Uma História da África (2019), construído a partir de um acervo de imagens da colonização portuguesa em Angola.

Nestes, as fotografias desvelam o lugar dos corpos nas relações de exploração. Em vez de adotar a forma supostamente neutra do relato ilustrativo narrado por voz e imagens “objetivas”, ­Woodbury injeta múltiplas camadas de sensorialidades no som, engajando subjetivamente o espectador, levando-o a sentir no corpo, em vez de apenas ver. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

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Muitos cinéfilos, incluindo os mais bem informados entre eles, farão cara de paisagem se alguém perguntar se conhecem os filmes de Billy Woodberry.

O diretor norte-americano é um dos líderes do L.A. Rebellion, movimento formado por estudantes negros e não brancos que estudavam cinema na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, nos anos 1970. Sua obra curta e intensa segue, porém, ignorada pelo cânone, que gera listas e listas de melhores filmes, repetindo visões uniformes enquanto mantém outros modos de ver na penumbra.

Na semana passada, Woodberry, que tem 73 anos e nasceu em Dallas, esteve no Brasil para participar da abertura da mostra que o Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista dedica a ele. A mostra, em cartaz até 30 de junho, permite descobrir um cineasta cuja atenção às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver.

A mostra reúne os dois longas e três curtas-metragens dirigidos por ­Woodberry ao longo de sua carreira e expande a compreensão de suas influências e interlocuções com dois outros blocos na programação.

Uma seleção reúne quatro títulos realizados por companheiros, como ­Haile Gerima e Charles Burnett, em que ele participa como narrador ou ator. A outra é composta por sete curtas de épocas distintas e origens diversas, filmes com que o diretor teve contato durante seus anos de formação e alimentaram nele o desejo de começar a fazer cinema.

O Carroceiro, realizado em 1963 por Ousmane Sembene, pioneiro do cinema africano, e Couro de Gato, um registro lírico do cotidiano de meninos de rua feito por Joaquim Pedro de Andrade para o filme coletivo Cinco Vezes Favela (1962) são alguns dos títulos escolhidos que deixaram marcas nítidas no cinema de realizador.

O curta A Bolsa (1980), de ­Woodberry, que reúne três instantâneos no cotidiano de um garoto negro, deixa clara tanto a inspiração colhida no cinema neorrealista italiano quanto no título de Joaquim Pedro. A perambulação de um grupo de meninos, a tentativa de roubar uma senhora e um diálogo pleno de aprendizados compõem uma ficção na qual Woodberry nunca perde de vista o horizonte documental. A fotografia em um preto e branco áspero acentua os contrastes, revelando um diretor em busca de formas que dizem mais que a temática.

A atenção do cineasta às más condições de vida dos negros vai além da indignação e da denúncia. Ela cria um modo de ver

Este olhar mais preocupado com os fios do que com a trama alcança um resultado valioso no longa-metragem Abençoe Seus Pequeninos Corações, de 1983. Esta ficção intimista em torno do cotidiano de uma família negra é narrada a partir da perspectiva do pai. Charlie é uma versão crescida do pequeno protagonista de A Bolsa, refém de um mundo que não oferece escolhas.

O drama social se desdobra em pequenos dramas familiares, que revelam a conversão dos afetos em intransigências, a condenação a papéis e funções sendo reproduzida entre o homem e a mulher, entre pais e filhos.

A fase mais recente da filmografia de Woodberry reafirma a singularidade de sua abordagem da vida dos negros. O longa-metragem E Quando Eu Morrer, Não Ficarei Morto (2015) esboça um procedimento narrativo que se torna mais elaborado nos dois curtas que se sucedem a ele.

O retrato do poeta beatnik Bob ­Kaufman, um perseguido político que adotou o silêncio como forma de protesto, desafia as convenções do documentário biográfico. As faces do personagem são reveladas menos por meio das entrevistas que do emaranhado musical e sonoro que Woodberry estende sob as imagens.

O recurso de pontilhismo sonoro produz resultados ainda mais espetaculares em Marseille Après la Guerre (2016), sobre o trabalho de estivadores do porto francês, e em Uma História da África (2019), construído a partir de um acervo de imagens da colonização portuguesa em Angola.

Nestes, as fotografias desvelam o lugar dos corpos nas relações de exploração. Em vez de adotar a forma supostamente neutra do relato ilustrativo narrado por voz e imagens “objetivas”, ­Woodbury injeta múltiplas camadas de sensorialidades no som, engajando subjetivamente o espectador, levando-o a sentir no corpo, em vez de apenas ver. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

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