Cultura

Uma questão de classe

Um conjunto de obras lançadas no País aponta a tendência de enlace entre a ficção e temas de cunho sociológico

Didier Eribon aponta a preocupação contemporânea com “classes, identidades, trajetórias” – Imagem: Bienal do Livro de Varsóvia
Apoie Siga-nos no

Em A Sociedade Como Veredito, publicado no fim do ano passado no Brasil, o filósofo francês Didier Eribon apresenta um cuidadoso panorama de uma tendência literária dos últimos anos: a aproximação da ficção de temas sociológicos ou, como ele coloca, uma preocupação com “classes, identidades, trajetórias”.

Ainda que esse tema apareça com bastante evidência em autores franceses ­atuais – especialmente Annie Ernaux e Édouard Louis –, Eribon comenta uma série de precursores dignos de nota, a partir de textos ainda não traduzidos no Brasil.

Merecem destaque Richard Hoggart (1918-2014), britânico ligado aos Estudos Culturais e autor de uma autobiografia em três volumes, A Measured ­Life (Uma Vida Medida), e Robert Roberts (1905-1974), historiador que publicou dois livros, na década de 1970, nos quais mesclou memórias e análise social: The ­Classic Slum (A Favela Clássica) e A ­Ragged Schooling (Uma Educação Irregular).

Eribon reconhece os méritos de ­Hoggart – e sua condição de precursor –, mas é também muito crítico às lacunas de seu projeto. Já Roberts, ele acha que “explica a vida das classes trabalhadoras de maneira muito mais complexa e mais realista” do que Hoggart.

A Sociedade Como Veredito. Didier Eribon. Tradução: Luzmara Curcino. (Âyiné, 320 págs., 94, 90 reais)

Esses autores mostram que as posições sociais dos indivíduos não são “naturais” e que, por conta disso, podem ser transformadas. Eribon elabora esse ensinamento a partir de autores e obras mais próximas de sua trajetória, como Jean-Paul Sartre (As Palavras), Simone de Beauvoir (O Segundo Sexo) e, mais decisivamente, Pierre Bourdieu (Esboço de Autoanálise).

O aspecto mais interessante de A Sociedade Como Veredito é o fato de o autor se apresentar, simultaneamente, como teórico e escritor. Ou seja, como o autor de Retorno a Reims, sua própria “autoficção sociológica”, e também como analista dessa tendência literária. “Entre as questões levantadas por Retorno a ­Reims” – escreve – “havia esta que, no fundo, sustentava todo o livro, como seu projeto próprio: por que voltamos àquilo de que tanto quisemos fugir?”

Na juventude, Eribon foge da família e vai para Paris, para se reinventar. Muitos anos depois, a própria fuga torna-se matéria narrativa e de pensamento.

No Brasil, alguns livros recentes têm seguido essa linha, como é o caso de Saia da Frente do Meu Sol, de Felipe Charbel, relato memorialístico sobre um “tio esquisitão”, O Que É Meu, de José Henrique Bortoluci, reconstrução narrativa da vida do pai caminhoneiro, ou A Estranha Ideia de Família, de Julia da Rosa Simões.

Nesse último, a autora rastreia a história dos avós paternos, buscando informações em arquivos públicos e privados, mesclando narrativa familiar e análise histórica – especialmente no que diz respeito às dificuldades experimentadas pelas mulheres no Rio Grande do Sul de fins do século XIX e início do XX.

A Estranha Ideia de Família inicia-se com “histórias varridas para baixo do tapete”, aproximando o exercício literário, portanto, de uma operação de desvelamento. A narradora descobre que o avô paterno, imigrante português, tinha abandonado a família.

A partir desse “desaparecimento”, a investigação aprofunda-se, com a busca de certidões de nascimento, livros de registro e fotos familiares. Nesse ponto surgem, inclusive, ótimas análises da materialidade dos objetos: inscrições nos versos, marca do papel fotográfico, pistas que dão substância ao relato e verossimilhança ao projeto como um todo.

Entre os capítulos narrativos, Julia incorpora breves “fichas de leitura”, citações comentadas de autores como ­Katja ­Petrowskaja, Paul Auster e Michelle ­Perrot, que dão o lastro que permite ao livro ser mais do que apenas uma “confissão”.

Da Itália vêm outras duas obras representativas dessa tendência: Brilha Como Vida, de Maria Grazia Calandrone, e ­Teoria da Classe Inadequada, de ­Raffaele Alberto Ventura. Maria fala da própria adoção quando criança, depois de ter sido abandonada pela mãe suicida, caso que chegou às páginas dos jornais (o livro incorpora as imagens dessas notícias). A mãe adotiva, muitas vezes, parece ressentida por conta dessa “intrusão” da menina em sua vida, no que parece ser uma “luta de classes” na cena íntima e familiar.

Ventura, por sua vez, recorre a textos literários, memes, personagens midiáticos (de desenhos da Disney a filmes de Hollywood) e referências teóricas (Marx, Durkheim, Baudrillard) para construir sua hipótese da “classe inadequada”: precisamente aquela que reúne a intelectualidade, “demasiado rica para renunciar a suas aspirações, muito pobre para realizá-las”, nas palavras do autor.

É nessa contradição entre “querer” e “poder” que circulam os textos dessa tendência de contato entre literatura e sociologia, com variados graus de consciência e deliberação. Além disso, mostram que habitar o presente não precisa ser uma atividade feita no automático – é possível inventar ferramentas de diagnóstico e, eventualmente, de mudança. •

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma questão de classe’

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

10s