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Uma longa caminhada

Três mulheres indígenas tornam-se catedráticas e prometem, com os seus saberes, “desorganizar” a USP

Pesquisadoras. Arissana Pataxó, Francy Baniwa e Sandra Benites romperam as barreiras da universidade e chegaram ao Mestrado e ao Doutorado – Imagem: Breno Queiroz/IEA/USP
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Desde o mês passado, ­­Arissana Pataxó, do povo Pataxó da Bahia, Francy Baniwa, do povo Baniwa, no Norte do Brasil, e Sandra Benites, Guarani Nhandeva do Centro-Oeste, ­ocupam a titularidade da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência. Até o fim de 2024, elas conduzirão, juntas, o programa Caminho da Cutia: Territórios e Saberes das Mulheres Indígenas.

A chegada das três pesquisadoras ao Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), onde fica abrigada a Cátedra, insere-se em um processo de incorporação, pelas instituições culturais e educacionais do País, não apenas de novas vozes, mas de outros tipos de conhecimentos e aprendizados.

“A universidade sempre foi esse lugar fechado e restrito às elites, especialmente até o início do sistema de cotas e das políticas afirmativas”, diz Arissana Pataxó, lembrando-se do momento em que ela própria ingressou no curso de Artes Plásticas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O ano era 2005 – portanto, pré-cotas – e, ao chegar à assistência estudantil da UFBA para obter informações sobre apoios para moradia e educação, ela ouviu: “Caso de índio é com a Funai”. “Eu me vi na obrigação de ter de explicar que eu estava ali como estudante, não como indígena”, recorda-se, para pontuar o significado de sua chegada ao IEA-USP.

Apesar da recepção áspera e decepcionante, Arissana seguiu seu percurso acadêmico até o doutorado. Além de trabalhar como artista e curadora – ela é, inclusive, a curadora da representação brasileira na Bienal de Veneza, que começa este mês –, ela realiza projetos em arte-educação, especialmente na Bahia.

“Hoje, as universidades são pressionadas a receber e recepcionar estudantes indígenas e a nos entender melhor. Nossa chegada à Cátedra é fruto da mobilização nacional do movimento indígena”, diz, antes de passar a palavra para Francy ­Baniwa durante a conversa coletiva que tiveram, por Zoom, cada uma de um ponto do País, com CartaCapital.

Francy Baniwa nasceu na comunidade­ de Assunção, no Alto Rio Negro, na Amazônia. Antropóloga, fotógrafa, pesquisadora e cineasta – um de seus filmes é o documentário A Roça e Seus Caminhos (2020) –, ela, assim como Arrissana, se emociona ao recordar o pedregoso percurso rumo à universidade.

“A partir do momento em que a gente almeja fazer um caminho que não seja o da roça, enfrenta um dos maiores obstáculos que existem na face da terra, que é sair dos nossos territórios e ir para as universidades. O desafio começa pelo próprio transporte. O Alto Rio Negro, de onde venho, é muito longe”, começa a relatar, pacientemente, do apartamento em que passa parte de seu tempo, no bairro de Santa Tereza, no Rio.

“Precisa de muito combustível para sair da aldeia e ir para o meu município (São Gabriel da Cachoeira) e, de lá, pegar um barco para, depois de dias de viagem, chegar em Manaus. Depois, de Manaus, tem de pegar um voo de cinco horas para chegar ao Rio de Janeiro”, detalha. “Com o valor da bolsa do doutorado, mal dá para chegar até Manaus.”

“Trilhar esses anos de academia não foi nada fácil”, diz Francy, vinda da Amazônia

Licenciada em Sociologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francy divide-se entre a cidade e a aldeia desde 2016. Primeira mulher Baniwa a obter o título de mestre, ela hoje desenvolve uma pesquisa de doutorado na UFRJ.

“Se não fossem os meus títulos, a USP nem saberia da minha existência. Eu estaria na roça acompanhando minha mãe”, diz. “Mas a minha formação começa dentro da minha comunidade, com meus parentes, e na escola indígena, onde estudei até o Ensino Médio. Meu povo é a primeira universidade que eu tive.”

É também aos ensinamentos transmitidos por sua comunidade e, em especial, por sua avó, que a antropóloga e curadora Sandra Benites se agarra quando, depois de ouvir as falas das outras duas catedráticas, é instada a rever sua trajetória.

“Eu posso ter um trabalho na universidade, mas o que eu trago de mais essencial, ao entrar na USP, são os saberes das mulheres indígenas, das parteiras – pessoas que movem a sociedade –, que nunca são conciliados com os saberes tradicionais. Do ponto de vista colonial, chegamos à Cátedra para desorganizar.”

Sandra, hoje, é diretora de Artes ­Visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e foi também a primeira curadora indígena do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Mestre em Antropologia Social pelo mesmo programa de pós-graduação de Francy, e também doutoranda, ela diz que, para deixar sua essência nas universidades, os indígenas têm, quase sempre, de fazer recusas ou silenciar.

“A gente aprende a ser guerreira do nosso jeito”, complementa Francy. “Trilhar esses anos na academia não foi nada fácil. Tive de enfrentar as leituras, é claro, mas muito mais que isso. Me fere, por exemplo, ser vista como boliviana ou peruana, e não ser reconhecida pela minha identidade, que é ser uma indígena aqui do Brasil.”

Ao longo deste ano, elas serão três indígenas brasileiras à frente de um projeto importante da USP, reconhecidas por suas identidades e seus saberes. “É mais uma porta que conseguimos abrir”, finaliza Sandra, com a voz, por um átimo, embargada e com os olhos rasos d’àgua. •

Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma longa caminhada’

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