Cultura

Um sedutor terror gótico

Robert Eggers cria uma atmosfera perturbadora, e estranhamente bela, em Nosferatu, remake do filme mudo de 1922

Um sedutor terror gótico
Um sedutor terror gótico
Sensualidade macabra. O terror está em cartaz nos cinemas brasileiros. Foto: Divulgação
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O diretor norte-americano Robert Eggers tem um dom para o cinema que vai além da narrativa, inclinando-se para a criação de mundos imersivos. Em O Farol (2019), quase podemos sentir a espuma do mar roçando sua pele e desfiando as bordas de sua sanidade. A estreia de Eggers, com A Bruxa (2015), foi de tal forma impregnada pelos rituais folclóricos do século XVII que, praticamente, se podia sentir o gosto da fumaça da madeira, da superstição e do terror. São filmes que ficam gravados no subconsciente.

Mesmo para os padrões do cineasta, Nosferatu, um remake do filme mudo expressionista alemão de 1922 de F.W. Murnau, Nosferatu, Uma Sinfonia de Horror, é uma obra de atmosfera perturbadora, ricamente realizada. A revisão da lenda do vampiro assinada por Eggers está em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 2.

A sensualidade macabra e a escuridão crepuscular propiciam ao público mais que uma experiência visual: o espectador vivencia uma espécie de assombração.

A construção do mundo de Eggers vai além dos cenários obsessivamente detalhados de suas histórias, ainda que as marcas do início de sua carreira no cinema, como designer de produção, fiquem evidentes em cada quadro.

O realizador explora e abraça as cadências e peculiaridades temporais específicas da linguagem: o roteiro é cheio de maldições lindamente ornamentadas e diálogos construídos com floreios que são tão cruciais para o desenvolvimento do personagem quanto os figurinos.

Mundos sanguinolentos e carnais como os que Eggers cria exigem desempenhos à altura. E na interpretação fenomenal da problemática recém-casada Ellen Hutter, vivida pela atriz Lily-Rose Depp – cujo empenho físico também impressiona – o filme encontra seu coração sombrio e torturado.

Em um prólogo carregado de erotismo, acompanhado por uma música que lembra o tilintar de uma caixa de joias amaldiçoada, vemos a jovem Ellen invocando, sem querer, um mal antigo.

É esse chamado psíquico de Ellen que desperta o Conde Orlok – papel de Bill Skarsgård, que surge coberto de próteses e com uma voz que mais parece um gargarejo – de séculos de sono em seu castelo nas montanhas dos Cárpatos. Durante algum tempo, ele invade os sonhos da jovem, lançando uma sombra maligna sobre seu corpo adormecido.

O casamento com Thomas Hutter (Nicholas Hoult) propicia a Ellen um alívio temporário dos pesadelos febris e ataques que a possuíam. A vida dos dois, numa pequena cidade da Alemanha, em 1838, é pobre, mas extremamente feliz.

A lua de mel nem tinha, porém, terminado quando Hutter, ansioso por ter condições de sustentar a esposa, aceita o convite de seu possível empregador, Senhor Knock – o incomparável Simon McBurney, que cria um tipo perturbado e extravagante – para ir à Transilvânia.

O objetivo da viagem era que ele levasse a escritura de uma mansão em ruínas a um cliente “muito velho e excêntrico”, que Knock diz, zombando, ter “um pé na cova”.

Ellen vai, nesse período, morar com sua amiga Anna Harding (Emma Corrin), uma mulher pálida e inocente casada com Friedrich, homem brusco e obcecado por seus negócios vivido por Aaron Taylor-Johnson – que, claramente, se debate com um papel que exige dele pouco mais que repetir frases do diálogo em tom de incredulidade exagerada.

À medida que os terrores noturnos e as convulsões de Ellen retornam, ela é atormentada por premonições de um horror que se aproxima. Atônitos, seus anfitriões tratam sua doença acorrentando-a à cama. Acatando o aconselhamento do especialista psiquiátrico local, Dr. Wilhelm Sievers (Ralph Ineson), eles também apertam seu espartilho: “Isso acalma o útero”, garantiu o médico.

Quando os sintomas de Ellen se agravam, Sievers recorre à perícia de seu ex-professor repudiado, Albin Eberhart von Franz (Willem Dafoe). Franz é uma figura excêntrica, e foi banido do mundo científico por seu fascínio pelo ocultismo e também por sua duvidosa higiene pessoal – evidenciada, sobretudo, pelas unhas pretas.

Tudo isso é construído, na tela, por uma realização extraordinária. Eggers nos conduz, de forma lenta e rigidamente controlada, a um pavor indizível, equilibrando temas como abandono e impulsos selvagens e perversos.

Embora se permita lampejos de comédia macabra, ele sempre os emenda a momentos de puro terror – uma tomada das ruas fervendo de ratos, ou Knock nu, demente e coberto por entranhas de animais. A trilha sonora, de Robin Carolan, é um uivo de desespero que soa como uma seção de cordas despencando em câmera lenta num poço de mina.

Mas nada é tão único no filme quanto o drama envolvente de sua fotografia. As transições de cena são requintadas: quando a câmera repousa sobre um santuário cheio de crucifixos, um bastião fútil contra a presença vil de Orlok, Eggers corta para outra cruz, desta vez formada pela interseção de ruas vazias.

Alguns quadros são embebidos de tons vívidos – como o vermelho do carmim, que aparece fortemente –, mas, em quase todo o tempo, a fotografia de Jarin Blaschke é despida de cor, como a casca do pão de um lanche de Orlok.

Há uma beleza terrível – e uma atmosfera absolutamente sedutora – nisso tudo que transforma o pesadelo gótico febril de Eggers em algo difícil de ser esquecido.

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