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Um mesmo País

Carvão expõe o Brasil profundo, conservador e imobilizado. Mas seus personagens são como sombras da população que se considera esclarecida

A interpretação de Maeve Jinkings é contida e marcante - Imagem: Pandora Filmes
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O carvão parece matéria ­queimada e sem vida. Mas incendeia, aquece, ajuda a cozinhar. Carolina ­Markowicz explora os veios dessa ambivalência em seu simples e complexo longa-metragem de estreia, intitulado, justamente, Carvão. Depois de ter sido selecionado para o Festival de Toronto e para a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o filme chegou ao circuito na quinta-feira 3.

As primeiras imagens indicam o caminho da crônica social. Em uma casa sem confortos, vemos Irene (Maeve ­Jinkings) mandar o filho desligar o rádio para economizar luz, enquanto, desconsolada, olha o pai agonizar numa cama.

O cenário sugere uma ficção naturalista, colada nas condições em que mal sobrevive a maior parte da população brasileira. Irene e o marido exploram uma pequena carvoaria na zona rural e vão vivendo com o pouco que sai dali e de alguns bicos.

A diretora não se contenta, porém, em percorrer o rumo mapeado pela tradição dos dramas sociais no cinema brasileiro. Seu olhar é mais atento às desordens da intimidade, às dissonâncias entre o interior e o exterior das personagens.

O Brasil profundo, estagnado e imobilizado pelo conservadorismo, revela-se de imediato nesse cenário sem horizontes. “Cresci numa região do interior paulista onde a religião tem um peso muito forte, controla o que a maioria das pessoas sente e pensa. Carvão, certamente, nasceu a partir da experiência dessa mentalidade que conforma e impede cada um de ser quem é”, diz Carolina Markowicz.

A derrota do projeto bolsonarista acentua a agudeza do filme de estreia de Carolina Markowicz

A entrada em cena de uma enfermeira que vem atender o velho doente introduz, por meio de um diálogo duro, o desequilíbrio. A mulher, com sua presença, vai expor a fratura entre o papel de escrava doméstica cumprido por Irene e seus desejos inconfessáveis. A excelente interpretação retraída de Maeve Jinkings acentua, por sua vez, a opacidade da personagem, dificultando o acesso à sua interioridade e motivações. Com o olhar vazio dos zumbis, sua personagem segue impulsos como se não pudesse escolher.

O roteiro coeso de Carolina não se limita ao retrato da fragilidade feminina da protagonista. “Busquei soluções narrativas coerentes com os segredos que os personagens se impõem, determinados por códigos que lhes dizem o que podem ou não fazer”, diz ela. “Não me interessa propor uma questão e resolvê-la, prefiro um cinema que sonda o que fica sob as aparências.”

A trama, de fato, organiza-se em torno de diversas formas de ocultamento. Além de um ato extremo de Irene para aliviar sua angústia, há aspectos vividos na penumbra pelo marido, Jairo, e pelo filho, Jean. E há, sobretudo, a chegada de um personagem estrangeiro de passado obscuro que transformará a casa em esconderijo.

Em vez de explicar tudo, o filme privilegia as dúvidas, fica aberto a leituras. Sua estrutura em forma de palimpsesto também favorece a interpretação de seus subtextos. A representação da velhice e da doença como obstáculos a serem descartados “assemelha-se a práticas hospitalares escabrosas reveladas pela CPI da Covid, embora tenhamos filmado antes de saber daquilo”, destaca a diretora.

Assistir a Carvão na semana em que o projeto reacionário do bolsonarismo sofreu uma derrota acentua a agudeza do filme. Se o discurso conciliador de Lula após a vitória ressalta que “não existem dois Brasis”, como opostos inconciliáveis, Carvão nos faz ver um país que não é outro, mas que escapa à compreensão dos que se julgam progressistas. Seus personagens são como sombras, negativos da população que se considera esclarecida, iluminada por uma visão crítica.

O país de Carvão não é, no entanto, nem um Brasil paralelo nem ignorante, mas ignorado. É o mesmo que se renega e que, vira e mexe, retorna como morto-vivo. •


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PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um mesmo País “

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