Cultura

‘Tenho medo do medo que você tem de mim’

Rapper Okado da Favela do Canal, no Recife, canta como enxerga aqueles que os tratam com desconfiança

Foto: Rodrigo Garcia/Divulgação
Apoie Siga-nos no

“Certo dia voltava de uma reunião. Estava apressado para chegar em casa, tá ligado? Tinha outro compromisso. Havia uma mulher na minha frente. Quanto mais acelerava o passo, mais ela acelerava o dela, tá ligado? Era de dia. Uma rua esquisita. Na frente, na beira do canal, umas pessoas, barracas, tá ligado? Comecei a imaginar: se a mulher gritar pega ladrão, vou ser linchado sem direito a me explicar”, conta Okado do Canal, 28 anos. A mulher dobrou uma rua e ele seguiu em frente aliviado.

“Ela estava com medo de mim. Eu não estava com medo dela, mas fiquei com receio do medo que ele tinha de mim e o que isso poderia gerar. Daí escrevi o refrão: ‘Tenho medo do medo que você tem de mim’”.

O refrão em questão é da música Medo do Medo, clipe recém-lançado pelo cantor e compositor cujo nome de batismo é Ellan Barreto. “Aí, enxerguei as coisas que eu poderia passar, que já passei. Foi daí que tive a ideia de escrever essa música”.

O rapper pernambucano mostra no clipe preocupação com a violência policial e faz reflexão sobre a perseguição ao negro da periferia.

“Medo do Medo tem inspirações em casos reais, acima de tudo. Principalmente nos que aconteceram comigo, de abordagens da polícia, de pessoas atravessando a rua com medo de mim porque eu tenho o estereótipo de bandido”, diz Okado. O single, que tem produção musical do DJ Phino, é uma homenagem aos mortos pela violência do Estado.

Ei Brown

Morador desde os 8 anos da Favela do Canal, no bairro do Arruda, no Recife, Okado lançou outro clipe, no meio do passado, da música Ei Brown, do seu último EP, o Preto Mermo.

Ele conta que, por causa de certa ascensão na música, começou a frequentar shopping, cinema, restaurante, prédios. Nesses locais, diz ter sofrido preconceito racial.

“Na medida que passo a frequentar outros lugares, vai aumentando a escalada de maus tratos, mau atendimento pela cor da pele, pelo jeito de se vestir, de onde a gente vem, a forma de falar”.

O clipe Ei Brown, dirigido pelo próprio Okado, mostra moradores da favela se arrumando em casa para ir ao trabalho em ambientes carregados de preconceito. Em outra parte do vídeo, mostra um grupo de negros, incluindo mulheres e crianças, num restaurante requintado, ao som do piano, onde olhares de repulsa ficam visíveis nas mesas vizinhas ocupadas por brancos.

Arte-educador

Okado do Canal foi, ainda adolescente, aluno de projetos de oficina de audiovisual e dança de rua. Depois, em 2011, tornou-se arte-educador da Usina da Imaginação, uma ONG que trabalha com crianças e adolescentes em diversas comunidades.

A parceria propiciou vários projetos. Um é a participação dele no Favela News, que mostra os acontecimentos da comunidade, e outro é de produtor cultural. O plano é montar uma escolinha de cinema, que foi momentaneamente colocado em suspenso por conta da pandemia.

“O problema mesmo foi com a criançada. Ela está muito acostumada com a rua, correndo no meio dos becos. Quando ando até a casa da minha mãe, que fica a dois becos do meu, vejo pelas grades das janelas os guris tristes, dentro de casa”, relata sobre esses tempos de pandemia.

O rapper Okado lançou em 2015 o EP Quebra de sigilo. Em 2017, o álbum Cada Dia Daria um RAP (2017), uma espécie de diário das vivências na comunidade com várias participações. O EP Mudanças veio em 2019, e o EP Preto Mermo, ano passado.

O trabalho é essencialmente centrado nas questões sociais de onde vive. Há outros clipes feitos por Okado com essa temática, como Vamos se Armar.

O músico teve um projeto aprovado na Lei Aldir Blanc, que é uma oficina audiovisual para crianças e adolescentes de roteiro, atuação, produção e direção.

“Tem muita criançada aqui produzindo conteúdo audiovisual”, diz, citando o celular com ferramenta. “Mas o projeto ficará talvez para o segundo semestre para realizarmos presencialmente, porque não funciona aqui fazer por videoconferência”.

Na sequência, para finalizar, emenda com uma ideia: “Quem tiver um sonho, não se deixe abater não, independente da cor, de onde vem, da situação financeira. Quando você corre atrás, acredita em seus sonhos, as pessoas acreditam em você”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo