Cultura
Tempo de abraçar
Depois de correr o mundo, resolvi conhecer a nossa boa e velha América Latina. Crônica de Alberto Villas
Estou no Uruguai. Não vim procurar Belchior, vim ver de perto o país do ex-guerrilheiro tupamaro José Mujica, hoje presidente da República eleito pelo povo. País que acolheu João Goulart, nosso presidente deposto pelos militares e que aqui virou fazendeiro em Mercedes até morrer. Sempre que piso pela primeira vez num país tenho vontade de beijar o chão. Gostava daquele gesto de João Paulo II, sentir o cheiro, o pulsar, o gosto da terra.
É inverno em Montevidéu, quase abaixo de zero. O vidro da janela do hotel em Pocitos está embaçado e uma neblina lá fora cobre toda a cidade. Preciso descer, andar pela rua, ver tudo mais de perto. Primeiras impressões. Orla, parece que o rio virou mar. Os bancos de concreto caprichosamente grafitados com uma folhinha de maconha e os dizeres: cultivar conciencia. Algumas gaivotas no ar, outras se equilibrando nas pedras. Andar é preciso.
Os carros caindo aos pedaços espalhados pelo centro velho da cidade me lembram Havana. Montevidéu circula apesar dos poucos semáforos, quase nenhum. Os prédios antigos são imponentes, a arquitetura das casas é curiosa, diferente da nossa. Nas esquinas, ambulantes vendem um pouco de tudo. Amêndoas, nozes, avelãs, castanhas. Vendem amendoim torradinho e água quente para abastecer as garrafas térmicas que as pessoas carregam pra lá e pra cá junto com o chimarrão.
Perto do porto, logo cedo, os comerciantes organizam o movimento. Colocam pra fora das vendas caixotes com bananas do Equador, pimentões vermelhos enormes, cebolas brancas redondas, vistosos pomelos e pencas de alho. Um velhinho caminha lentamente e encosta a placa na parede: Tenemos huevos caseros especiales.
Os primeiros sebos começam a abrir suas portas. Na calçada, caixas de papelão transbordam a paixão latinoamericana por nossos escritores: Borges, Cortázar, Llosa, Puig, Sábato, Rulfo, um ao lado do outro. Lá dentro do Moebius Libros um relógio parado no tempo marca 11 horas e 16 minutos apesar do meu de pulso marcar 10 horas. Ao lado, um vinil bem usado tem uma capa colorida e o escrito psicodélico: Flower Power –Mas Musica para Hippies Volume 2.
Nos postes, adesivos pedem aos motoristas respeito com os ciclistas e anunciam curso de português em apenas quatro meses. Nos muros, cartazes convidam para a Segunda Feria del Libro Anarquista, convocam o povo para uma Marcha por la Tierra, os trabalhadores lácteos para uma greve e um luminoso faz um alerta: Todos contra la Dengue! Na catedral, velas acesas e muitas promessas feitas. Numa urna de vidro milhares de bilhetinhos, milhares de pedidos. Pela paz na Venezuela, por um Brasil sem corrupção, pela saúde de Antonella, para que o Senhor encontre um lugar para o Guilherme lecionar. E numa cabine telefônica do lado de fora um pequeno cartaz curto e grosso: A 40 anos del golpe escrachamos a los que apoiaram el golpe.
Os táxis pretinhos básicos são raros e também estão caindo aos pedaços. No Mercado del Puerto, a parrillada já está no fogo. Os mais famintos já colocam o chouriço dentro do pão e dão o primeiro gole numa Pilsen estupidamente gelada, apenas do inverno rigoroso.
Montevidéu acordou. Uma passeata de carroceiros cruza o centro da cidade. Responsáveis pela reciclagem do lixo, os chamados classificadores de basura temem por seu futuro. Um projeto quer tirá-los das ruas do centro em nome do progresso. São muitos e todos eles carregam uma bandeira do Uruguai. Avante!
Aqui é também o país do futebol, aquele que nos fez chorar em 1950. Na traseira de um Ford Ka estacionado perto do Parque José Enrique Rodós um adesivo mostra que a família toda é Penãrol desde pequenininha. O Uruguai é o país do melhor doce de leite do mundo e do civito, um sanduiche com batatas fritas, ovos, bacon, maionese, carne, alface, pimentão, azeitonas e o que mais couber.
De repente, Mas Puro Verso, a livraria mais bonita da cidade. Na vitrine, as obras completas de Juan Carlos Onetti, um orgulho nacional. Todos os livros enfileirados: Terra de Ninguém, A Vida Breve, Os adeuses, Para uma tumba sem nome, Tempo de abraçar. Na seção de cds parece tudo pronto pra rolar a festa. Caetano manda aquele abraçaco enquanto Gil espalha pelo ambiente a canção Maria Minha: “Maria Minha/Sai dessa cozinha/O café pode esperar/Vem ficar na rede que eu armei/Pra nós se amar”.
Montevidéu nos espera e sei que é muito mais. Colado no vidro traseiro de um fusca um papel pardo anuncia: Se vende VW Beetle 1961 funcionando. Na banca de jornal, a edição em espanhol do Le Monde Diplomatique pergunta: Que quiere la classe média? enquanto a revista Caras & Caretas estampa na capa: Nuestro hombre en la Havana. É José Mujica, o Pepe, o ex-guerrilheiro, um bom assunto pra semana que vem.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.
Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.