Cultura

Sob o signo do ar

Até 15 de setembro, o Instituto Moreira Salles mostra pela 1ª vez no Brasil a obra de Jacques Henri Lartigue

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O menino abre e fecha os olhos, depois os arregala, decidido a capturar integralmente a imagem à frente. Aos 18 anos, em 1912, Jacques Henri Lartigue vive “no país dos átomos de segundo”. Mas só ele, os anjos e Deus sabem disso, porque Zyg nem desconfia de seu amor à velocidade. Zyg é o gato de Jacques. Ele quer alcançar a pequena bola de papel amarrada à vara de pescar que ora lhe é estendida, ora retirada do alcance. Em uma das mãos de seu dono está o objeto que o bicho quer, na outra, o disparador. Lartigue espera Zyg irritar-se e ­pular na direção da câmera. “É tão divertido quanto a pesca com linha”, considera o fotógrafo sobre seu novo esporte. Em 30 minutos de espera, o jovem francês aciona o disparador duas vezes e ainda comemora as impressões obtidas.

Era como se Lartigue criasse ali mesmo o movimento na fotografia, exercida com liberdade e irresponsabilidade. “O admirável vazio de minha vida!”, gostava de proclamar. Parecia fotografar pela primeira vez as corridas, os tombos, os pulos das babás de saias longas, as transparências dos lençóis a imitar fantasmas e as mulheres bonitas. Aparentemente, desejava eternizá-los não diante da história, mas de si mesmo. Para empalhar tamanha felicidade com satisfação técnica, deixava os livros de lado e lia revistas como A Vida em Movimento, ágil em atualizar seus equipamentos com o dinheiro dos pais.

Lartigue teria nascido com a fotografia ou a fotografia com ele? Como entendia o menino prodígio, ela havia nascido “para” ele, assim como a velocidade dos automóveis, o soprar dos aeroplanos e os banhos de mar. Registrava obsessivamente seus paraísos, embora não se considerasse de todo feliz. “Nenhuma câmera jamais conseguirá capturar tudo!” Antes de Lartigue, era como se a alegria jamais tivesse existido nas fotos.

Em oito décadas dedicadas a estas “partículas de êxtase”, como as definiu o ensaísta Michel Frizot, ele produziu 45 mil imagens, compôs 135 álbuns, escreveu diários, fez filmes e sobreviveu desse fazer, um pouco constrangido e apenas quando isso se fez necessário, depois que a crise financeira chegou para a família, nos anos 1940. Havia tentado antes ser pintor de retratos, em 1,5 mil telas sempre renegadas. Tudo isso sem imaginar que um dia, como naquele ano de 1963, o Museu de Arte Moderna de Nova York o chamasse para uma primeira grande retrospectiva e o fizesse conhecido no mundo por ter exercido a seu modo o extremo prazer de fotografar.

Passadas cinco décadas desde o feito nova-iorquino, o Brasil vê Lartigue pela primeira vez. São 255 obras, entre imagens, diários, álbuns e o filme O Bandido e a Fada Améliot, em exposição no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, até 15 de setembro. A ocasião se completa com um catálogo editado simultaneamente no Brasil (IMS, 266 págs., R$ 150) e na França, pela Editora Hazan, a sugerir que uma exposição semelhante se dará naquele país, tão logo possível, por obra da Donation Lartigue (www.lartigue.org), a fundação criada em 1979 para gerir e promover sua obra no mundo.

A curadora Martine D’Astier, que trabalha para a fundação, quis que elementos da obra de Lartigue, como a água e o ar, estivessem bem representados nessa exposição inaugural em país admirado por sua natureza. Como ela diz, os elementos de difícil captura técnica à época, como a água em explosão, carregariam em si, além de um aspecto de contemplação, uma dimensão espiritual ao gosto do artista. “Foi ao trabalhar nesta exposição que me dei conta de que tais elementos da natureza, além de cobrirem grande parte da trajetória do artista, constituem um aspecto por demais importante em sua obra.” Para o brasileiro mergulhar nela, D’Astier aconselha que entenda, naqueles álbuns, sua tentativa obsessiva de reconstruir a própria história, destacando, dela, apenas as felicidades. “A memória de Lartigue embelezava tudo.”

Ele, que ganhou a primeira câmera do pai engenheiro aos 8 anos, exerceu o direito de permanecer criança até o fim. “Tudo se renova indefinidamente, exceto em mim”, escreveu. Sem nunca ter precisado frequentar escolas, recolhido ao campo com o irmão inventor, satisfeito de pertencer a uma família apaixonada por peripécias, e pessoalmente desobrigado ao trabalho, exerceu a vida por procuração fotográfica. Leu pouco, escreveu muito, amou A Sagração da Primavera, de Igor Stravinski, quando isso parecia estranho a quase todos, e até fotografou a atriz Nastassja Kinski na juventude de extraordinária beleza, obtendo dela um dos seus retratos de criança. Amou moderadamente os pintores, a exemplo de Claude Monet, e viveu isolado dos pioneiros fotográficos como o compatriota Eugène Atget, a quem nunca conheceu. Jamais entendeu a paixão do discípulo e amigo Henri-Cartier Bresson pelas questões políticas, menos ainda suas veleidades como pensador. E viveu como julgou importante, sob o signo do ar.

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