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Síndrome de vira-lata

Em busca de prestígio, alguns criadores continuam a definir as séries de tevê como filmes de oito horas

Narrativas. O criador de The Boys (acima), da Amazon, se irrita com as declarações de colegas e diz: “Vocês estão errados! Façam um programa de tevê.” Já os responsáveis por Wednesday (abaixo), a estrear na Netflix, desejam fazer “um filme de Tim Burton” - Imagem: Amazon Prime Video e Netflix
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Há uma curiosa mutação que se espalha pela indústria do entretenimento neste momento: ela altera a forma e adultera o tempo. As séries de tevê, ao que parece, continuam se transformando em filmes.

Embora, provavelmente, não sejam o paciente zero dessa onda, os produtores de Game of Thrones (HBO Max) são, sem dúvida, seus superdisseminadores. Em 2017, eles causaram polêmica ao descrever sua série como “um filme de 73 horas”.

Não demorou para que a paisagem da tevê estivesse repleta de séries reclassificadas como filmes de duração variável, mas uniformemente vasta.

A expressão foi reaproveitada com frequência suficiente para alcançar, entre os críticos de televisão, a posição de “calamidade de toda a existência”. O fenômeno inspirou até mesmo um artigo na seção Shouts and Murmurs (Gritos e Sussurros) da revista New Yorker. Pois, sem jamais ter terminado, o explosivo debate sobre a diferença entre cinema e televisão está de novo quente.

Miles Millar e Alfred Gough, cocriadores do novo reinício da Família Addams, na série Wednesday, a estrear na Netflix, proferiram as palavras mágicas em uma entrevista à Vanity Fair na semana passada. “A ambição do programa é ser um filme de Tim Burton de oito horas”, disseram.

Burton está a bordo do novo projeto como produtor-executivo e diretor de quatro dos oito episódios. Miles Millar e Alfred Gough tiraram o pó da velha frase em um período no qual as críticas a esse modelo têm sido crescentes.

Recentemente, Eric Kripke, criador da série The Boys (Amazon Prime ­Video) lançou um desafio sobre o assunto. Ao falar sobre os diretores de tevê que afirmam ter concebido suas séries como uma espécie de filme, ele disparou: “Fodam-se! Não, vocês estão errados! Façam um programa de tevê. Vocês estão no negócio do entretenimento”.

Na nova minissérie de Olivier Assayas, Irma Vep (HBO Max), que reinventa a sua sátira original do show biz, de 1996, o diretor do programa dentro do programa evoca o adágio do “filme de oito horas” em uma entrevista, como se quisesse zombar do caráter inevitável da frase.

Ao falar comigo em Cannes, no início deste ano, Assayas confirmou não comungar dessa mentalidade. A frase, segundo ele, espelha os vestígios de caricatura que marcam o resto da série.

Entender a causa de todo o alarido originário de uma figura de linguagem aparentemente banal requer uma consciência das conotações e dos preconceitos tacitamente codificados na virada tevê-para-filme.

Quando os produtores de tevê comparam seu trabalho a um filme, eles estão fazendo um convite a uma série de associações estabelecidas pelos elogios a clássicos dos anos 2000, como Os Sopranos ou A Escuta, que tiveram suas qualidades “cinematográficas”. Falava-se então em escala ambiciosa, narrativa de longa duração e sofisticação técnica com a câmera.

A partir dos hábitos criados pelo boom do streaming, muitos têm deixado de lado a estrutura episódica

Quando os roteiristas faziam essa comparação, ela era recebida como um ­insight. Mas, vinda da boca de diretores, ela soa mais como controle de imagem e como a tentativa de garantir que a série em questão é suficientemente bem realizada para ser comparada aos grandes da tela de prata.

Trata-se, no fundo, de uma forma de classificar preventivamente o produto e de distanciar a tevê de uma insignificância percebida como inseparável da personalidade do meio. E assim se começa a ver a condescendência nessa linha de pensamento que aliena qualquer pessoa investida de respeito e valorização pela tevê.

Mesmo que a frase “filme de xis horas” não tivesse sido usada como desculpa para se arrastar episódio por episódio com flagrante desrespeito à sutil arte do ritmo, ainda seria fundamentalmente imprecisa. Usar uma temporada inteira para contar uma história abrangente dividida em segmentos não é encaixar o cinema nos moldes da tevê, mas a própria definição de tevê.

Os escritores que endossam essa filosofia manca não rejeitaram a serialização. Apenas resolveram ser ruins nisso. Todo grande programa de tevê encontrou uma maneira de contar histórias contidas no espaço de um episódio que, no entanto, se aglutina em uma estrutura narrativa maior.

Como o streaming nos permite eliminar o tempo entre os episódios, muitos tomaram essa possibilidade como permissão implícita para abandonar os blocos de construção dessa arte.

O quase meme do “filme de xis horas” trai uma ideia confusa sobre dignidade e validade criativa, já que diretores com complexo de inferioridade imaginam que serão levados mais a sério se apostarem no formato originalmente cinematográfico.

Não deixemos de observar que os gerentes de franquia do Universo Cinematográfico Marvel hesitam em anunciar seu produto como um programa de tevê, mesmo quando forçam a narrativa em série e drenam a grandiosidade polida do cinema.

Tudo isso equivale a uma espécie de profecia autorrealizável: a tevê não ganhará estatura até que aqueles que dela fazem parte tenham orgulho de seu formato. Todos os profissionais fariam bem em abraçar as qualidades únicas de seu campo de atuação como vantagens a serem trabalhadas em vez de enxergá-las como limitações a serem superadas.

Até que o façam, há uma maneira simples de expor o absurdo de a tevê se envolver em roupagem de filme: da próxima vez que você ouvir alguém inflar o ar de prestígio de um programa dessa maneira, imagine o filme mais embaraçoso, amador e desprezível que você já viu.

Deixe seu exemplo ser uma lição: as palavras têm significados, a forma não pode ser sinônimo de qualidade e existem coisas muito piores que a tevê. •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

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