Cultura
Sensibilidade vintage
Como e por que o Nirvana se tornou uma das bandas mais influentes para a geração Z, nascida após a morte de Kurt Cobain, ocorrida 30 anos atrás


Cinco anos atrás, quando tinha 16 anos, o artista alternativo Ekkstacy roubou duas camisetas de uma loja de discos perto da casa onde passou a infância em Vancouver, no Canadá. As duas eram de bandas de Seattle: uma do Nirvana, a outra do Alice in Chains. “Pensei: não vou usar isso enquanto não souber o que é”, recorda-se. Depois de ouvir os artistas, uma das camisetas teve bastante uso: a do Nirvana.
Nesta sexta-feira 5, completaram-se 30 anos da morte de Kurt Cobain, seu vocalista e líder. Ao longo dessas décadas, houve um fluxo natural e constante de artistas que citaram o Nirvana em entrevistas ou criaram trabalhos que soam parecidos com o da banda.
Nas palavras da cantora, compositora e artista performática Poppy, de 29 anos, “é impossível atirar um dardo e acertar uma banda que não foi influenciada por eles”. No ano passado, o rapper Kevin Abstract, 27 anos, ex-membro do grupo de hip-hop Brockhampton, lançou um álbum, Blanket, inspirado no Nirvana. No ano passado, a Boygenius, a maior banda de sua geração, apareceu na capa da Rolling Stone recriando a capa do Nirvana de 1994.
“O Nirvana injetou vida nova não apenas no rock, mas também na música popular, numa época em que grande parte das Top 40 parecia obsoleta”, diz Christian Hoard, editor da Rolling Stone. “O Nirvana virou rock clássico, e a garotada continua escutando. Eles ainda parecem novos e atingem algo dentro de nós que é indefinível.”
Hoje, os jovens encontram o Nirvana por meio de links, playlists e contas de fãs que compartilham a moda e o estilo de vida dos anos 1990
Na década de 2000, os jovens conheceram o Nirvana por meio de revistas de rock e compilações de CDs. Antes de emergir como uma das compositoras mais comoventes do indie rock, Samia, que é também cantora e tem 27 anos, foi uma criança obcecada pelo Nirvana. “Eu tinha cartazes de um músico que morreu por suicídio colados nas paredes do quarto e ouvia Bleach todos os dias. Meu pai, provavelmente, se preocupava”, ela ri.
Na década de 2010, a plataforma Tumblr deu origem à primeira fase de nostalgia online: a jornalista, DJ e apresentadora de rock da geração Z Yasmine Summan lembra a era do “grunge pastel”, que romantizava a moda grunge e direcionava mulheres e fãs LGBTQ+ para bandas alternativas dos anos 1990.
Hoje, os jovens encontram o Nirvana por meio de links, playlists de serviços de streaming e contas de fãs que compartilham moda, estilo de vida e cultura dos anos 1990, com imagens feitas por admiradores e edições de vídeo de Kurt Cobain.
Nos anos 1990, o Nirvana teve um sucesso sem esforço, de uma forma hoje impensável. Algo que, retrospectivamente, torna sua carreira tão atraente é que eles nem deveriam estar lá. Nick Ruskell, antigo funcionário da revista britânica Kerrang!, lembra que Nevermind , o álbum inovador do Nirvana, tirou Michael Jackson do topo da parada da Billboard, quando ele estava no auge de seu poder.
“Eles foram transportados de forma muito orgânica do underground para a sala com Michael Jackson, com sua personalidade, roupas, estranheza e força intactos”, diz Ruskell. “Eles eram os mais visíveis de uma nova geração de bandas que não eram tão apaixonadas pela ideia de fazer música como caminho para possuir um helicóptero dourado. Isso os tornou cool.”
Assim como os Beatles definiram a formação de uma banda de rock, o Nirvana redefiniu o que era uma banda: despretensiosa, dura e sensível, abraçada pelo sistema enquanto o ameaçava. As cenas musicais vieram e se foram, mas esse conceito de banda não foi atualizado ou evoluiu para algo novo.
O que mudou na composição das bandas foi a diversificação: mais mulheres e pessoas queer e trans do que nunca. E o Nirvana, com sua política progressista e seu impulso pela igualdade e pelo respeito, teve um papel significativo nisso. Cobain, em seu diário, falava sobre feminismo e questões de justiça social.
A suavidade e a empatia do líder da banda tocaram a cantora e compositora inglesa L Devine, de 26 anos. “Lembro-me de ter ficado surpresa ao saber o quanto ele era sensível, e acho que ele era realmente punk nesse sentido”, diz. “Estar situado no que era predominantemente um lugar hipermasculino da música, sendo tão franco sobre sexismo, racismo e homofobia, desafiou o que significava ser uma estrela do rock naquela época.”
Para Poppy, o impacto emocional do Nirvana é diferente de tudo o que ela já ouviu. “Há um destemor que falta em muitas músicas atuais. Eles não representam medo: grite se quiser, chore se quiser, quebre coisas”, diz ela. “Aparentemente, eles criaram um ambiente em seus shows ao vivo que aceitava qualquer pessoa: gays, heterossexuais, trans, de qualquer cor, e eles tinham um espírito muito direto.” Esse sentimento é repetido por outros, como se houvesse a sensação de que o Nirvana é uma referência cultural tão moderna que é estranho que suas existências nunca tenham se cruzado.
Ecos. A cantora, compositora e artista performática Poppy, de 29 anos, e o rapper Kevin Abstract, de 27, são dois dos jovens assumidamente influenciados pela banda – Imagem: Redes sociais
Samia não tem vergonha de dizer que é descendente de Cobain. “Talvez você só consiga ouvir um pouco isso sonoramente em minhas músicas anteriores, mas o que permaneceu dele em minhas músicas está mais nas letras – passei muito tempo lendo seus diários”, diz ela.
O Nirvana é uma banda, mas é a banda de Kurt Cobain – para sempre enredada pelo tamanho de sua personalidade e pela tragédia de sua morte. O mito de fazer parte do Clube 27 – grupo de artistas, que inclui Janis Joplin e Jimi Hendrix, mortos por suicídio ou por um estilo de vida de alto risco nessa idade – desempenha um papel infeliz em seu apelo.
O fato de ele ser o garoto-propaganda do grunge, de cabelos cor de areia e olhos azuis, não faz mal. Cobain era pisciano, o que a geração Z, com inclinações astrológicas, sabe ser o sinal de compaixão e sacrifício espiritual pelos outros, tipicamente associado a Jesus.
Em sua própria música e nota suicida, ele fez exatamente essa comparação, chamando a si mesmo de “o pequeno e triste, sensível e insatisfeito Peixes, homem de Jesus”. As celebridades carregam um significado simbólico próprio e Cobain, com suas lutas abertas com sua saúde mental, é um totem das dificuldades enfrentadas pela identidade masculina moderna insatisfeita.
Para os jovens que o vivenciam através de imagens, ele é algo como uma Marilyn Monroe – quase um ser mitológico. Isso foi parcialmente intencional. Apesar de seus sentimentos anticelebridades, Cobain tinha consciência das ferramentas necessárias para dar sentido à sua arte e legado como um artista sério, e desejava ativamente que sua banda se tornasse extremamente bem-sucedida.
Despretensiosos, duros e sensíveis, os integrantes do Nirvana criaram, à época, um novo conceito de bandas de rock
Na atualização de 2023 de sua biografia do Nirvana, The Amplified Come As You Are: The Story of Nirvana, Michael Azerrad escreveu: “Kurt, sendo um estudioso da história do rock, sabia que a história de uma banda é essencialmente uma lenda – no sentido de que há alguma margem de manobra na verdade, desde que sirva ao mito geral”.
É fácil apaixonar-se por uma figura mítica quando você tem uma história completa e atemporalmente dramática. O Nirvana nunca teve a chance de fazer álbuns medianos ou cair na obscuridade. Cobain nunca atingiu uma meia-idade estranha. Temos apenas os maiores sucessos e os momentos idiossincráticos. Para uma geração viciada na nostalgia por aparentemente todas as décadas recentes que mal viveram – os anos 1990, os 2000 e até os 2010 –, Cobain é um ponto de entrada emocional na sua década.
Ekkstacy, que fez sua primeira coletânea musical sozinho com um produtor, quer agora compor e gravar com um grupo de músicos e está se inspirando em como o Nirvana fez seu álbum de estreia, Bleach. Por que o Nirvana, eu pergunto, por que não qualquer outra banda daquela época, como Pearl Jam ou Soundgarden? Ekkstacy dá de ombros: “O que posso dizer? Eles simplesmente são melhores que todos os outros”. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1305 de CartaCapital, em 10 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sensibilidade vintage’
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