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(Um) Ensaio Sobre a Cegueira carrega um estreito simbolismo com a trajetória do longevo Grupo Galpão

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A 27ª montagem. O espetáculo nascido do emblemático romance de José Saramago estreou em BH, na sede do coletivo, e chega agora ao Teatro Carlos Gomes, no Rio. Em novembro, a peça cumpre temporada em São Paulo – Imagem: Tati Motta
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Tudo começa com um homem que, com o carro parado diante do semáforo vermelho, fica cego de repente. Em vez da escuridão, “enxerga” um “mar de leite”, numa cegueira diferente, de brancura luminosa. Em seguida, outras pessoas subitamente se tornam cegas, configurando uma espécie de epidemia com a qual as autoridades não sabem lidar.

Os primeiros cegos são, então, confinados em um manicômio, sob vigilância de militares, também responsáveis pelo abastecimento do local. “O mundo está todo aqui dentro”, constata, no livro, a mulher do médico, a única personagem que ainda vê.

Este é o argumento de Ensaio Sobre a Cegueira (Companhia das Letras, 1995), um dos livros mais emblemáticos do escritor português José Saramago (1922–2010), vencedor do Nobel de Literatura em 1998.

O romance – que completa agora 30 anos – ganhou uma versão para os palcos criada pelos atores e atrizes do Grupo Galpão, de Belo Horizonte, com dramaturgia e direção de Rodrigo Portella, encenador da premiada Tom na Fazenda e de Ficções, com Vera Holtz.

(Um) Ensaio Sobre a Cegueira, a peça, estreou em abril, em BH, onde cumpriu temporada na sede do grupo, o Galpão Cine Horto; teve três apresentações em Porto Alegre em meados de agosto; e, na quinta-feira 28, entrou em cartaz no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Em novembro, chega em São Paulo.

“Em tempos de fake news e ascensão da extrema-direita, a cegueira parece disseminar-se”, diz Eduardo Moreira

O espetáculo celebra tanto os 43 anos do Galpão quanto a primeira parceria entre os artistas do coletivo mineiro e o encenador fluminense. A proposta de adaptar a obra de Saramago para os palcos partiu de Portella e, como diz Eduardo Moreira, um dos atores do grupo, “foi entusiasticamente recebida” por todos.

A premissa do romance sempre pareceu instigante a Portella. “Quando se desloca algum elemento ou circunstância para fora da normalidade, o que acontece? O que somos capazes de fazer – mais do que como humanos, como animais – quando nos falta alguma coisa que é classificada como normal?”, questiona ele. “O que ocorre se um grupo de ­pessoas que não enxergam é colocado dentro de um mesmo lugar?”

O processo criativo começou com uma série de encontros realizados ao longo do segundo semestre de 2024, durante os quais o diretor e o elenco trabalharam uma primeira adaptação do romance, que serviu de base para a dramaturgia final.

Já nesse momento o compositor e violoncelista Federico Puppi juntou-se ao grupo para iniciar a criação da trilha sonora, executada ao vivo pelos próprios atores e atrizes. A música, aliás, tem um papel fundamental na encenação, modulando o discurso, sustentando o ritmo e ressaltando o tom das cenas (irônico, tenso etc.).

Depois desse processo, foram três meses intensivos em sala de ensaio, neste ano. O resultado é um elenco afiado, que se mantém o tempo todo no palco, sendo também responsável pela contrarregragem, ou seja, por montar e desmontar o espaço cênico, rearrumar os objetos e realizar efeitos sonoros ou de iluminação. Até o intervalo entre os dois atos, A Cidade e O Manicômio, torna-se cena.

A montagem é bastante fiel à essência do romance, mesmo com a supressão ou redução de algumas passagens.

“A ideia era tentar manter não só a estrutura ficcional, mas o modo de contar do Saramago”, afirma Portella. “Ele narra a história sem pontos finais, interrogações, travessões ou dois pontos. A história vai em um fluxo contínuo e vertiginoso e chega uma hora em que você não sabe mais quem está falando, se é o personagem ou se é o narrador. Isso acontece no livro e também na peça.”

Daí a opção pela figura do “ator formulador”, que ora narra a situação, ora participa da cena como atuante ou testemunha – estratégia bastante acertada, vale dizer. Assim, Antonio Edson, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones, além de Federico­ Puppi, não só interpretam personagens, mas contam, a partir de uma perspectiva distanciada, o que se passa com eles.

Trabalho conjunto. A proposta para a adaptação partiu do encenador fluminense Rodrigo Portella, diretor de Tom na Fazenda e Ficções – Imagem: Dalton Valério

É interessante notar que, embora o princípio do jogo teatral se baseie justamente na premissa de tornar algo visível diante de um público que assiste, a peça trata da perda da visão e, em um plano figurado, da capacidade de discernir aquilo que se vê.

Atores e atrizes não fingem cegueira; veem o tempo todo. No entanto, os espectadores sabem – e assumem – que os personagens estão cegos. “O fato de não representarmos a cegueira foi um ponto de partida importante”, conta Eduardo Moreira, que interpreta o médico.

“Tudo está inserido dentro da proposta de que a cegueira não é vista como algo literal, mas uma metáfora da condição humana. Isso dá outra dimensão à epidemia que assola o mundo”, diz Moreira. “Nesse sentido, a fábula proposta por Saramago ganha um poder de crítica aos dias atuais, de extrema atualidade. Em tempos de fake news, redes sociais e ascensão da extrema-direita, a cegueira parece disseminar-se de forma inexorável.”

São quase duas horas e 20 minutos de um espetáculo que combina cenas de alta voltagem dramática de intenso lirismo com instantes de sátira e humor. Quando a epidemia se alastra e o manicômio fica superlotado, começam a surgir facções entre os cegos, jogos de poder, chantagens sobre os demais e uso da violência.

“Estamos diante de uma distopia”, afirma Portella. “Não nos faltam exatamente os olhos e a imagem, mas a consciência de coletividade, a capacidade de ponderação, a tolerância, a paciência. Nos falta o compromisso com o outro.”

A fim de reproduzir em cena o aumento veloz do número de cegos, em momentos determinados da peça dois grupos de espectadores são convidados a integrar a encenação.

Ao optar pela “experiência”, no momento de adquirir o ingresso, o público define sua participação. Já no palco, todos são vendados. A presença dos “novos cegos” evidencia a sensação de vulnerabilidade e desorientação que emerge de modo tão contundente no romance de Saramago.

O escritor e pesquisador em Estudos da Linguagem Diogo da Costa Rufatto optou pelo “ingresso experiência” durante a temporada no Galpão Cine Horto. A proposta o interessou pela possibilidade de vivenciar algo para além do papel de espectador. Como havia concluído recentemente a formação teatral oferecida no centro cultural do grupo, partilhar a cena com a trupe mineira atraiu sua atenção.

“Não nos faltam exatamente os olhos e a imagem, mas a consciência de coletividade”, diz o diretor

“Fui chamado ao palco apenas no segundo grupo. Tive, portanto, a oportunidade de ainda ver como os outros reagiam aos estímulos que recebiam, na expectativa para quando chegasse a minha vez”, conta Rufatto. “Escutava o texto sendo encenado, mas sentia um pouco de dificuldade de prestar atenção nas falas. Me encontrava em estado de alerta, apenas reagia com o corpo a qualquer estímulo.”

Apesar do tom crítico e da distopia presente na obra de Saramago, tanto o livro quanto a peça terminam de forma esperançosa. O desfecho criado pelo Galpão carrega também um estreito simbolismo com a trajetória do grupo, cujas raízes estão ligadas ao teatro popular e de rua.

Com (Um) Ensaio Sobre a Cegueira, seu 27º espetáculo, o longevo coletivo comprova não apenas seu vigor, mas sua versatilidade, evidenciada no trabalho com diferentes diretores e na busca por variadas linguagens teatrais.

Em tempos de intensa profusão de imagens, com impacto direto na subjetividade coletiva, a companhia nos incentiva a reparar naquilo que vemos. No fim da peça, ecoam nos espectadores as palavras da mulher do médico, que atravessa a epidemia sem perder a visão: “Penso que não cegamos, que estamos cegos. Cegos que, vendo, não veem”. •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Se podes ver, repara’

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