Cultura

Ron Carter, o baixista dos 2.221 discos, volta ao Brasil

Músico foi do quinteto de Miles Davis e veio 25 vezes ao Brasil; a 26ª oportunidade de ouvi-lo ocorre no dia 12

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Após um levantamento recente do Guinness Book of the Records, foi concedido ao contrabaixista Ron Carter, de 81 anos, o título de o mais gravado músico de seu instrumento na história. Carter já tocou em 2.221 discos. Isso demonstra, além de trabalho duro, também uma grande generosidade (pela gama ampla de artistas que já o tiveram como baixista em seus trabalhos). Um espectro que vai de Freddie Hubbard a Dizzy Gillespie, de Don Cherry a Sonny Rollins, de Dexter Gordon a Thelonious Monk, de Oscar Peterson a John Coltrane, de Elvin Jones a Wes Montgomery, de Chet Baker a Cannonball Adderley, de Wayne Shorter a Red Garland, de Tommy Flanagan a George Benson. Sem contar Roberta Flack, B.B. King, do cantor George Benson ao grupo A Tribe Called Quest. E Miles Davis, obviamente, de quem integrou o famoso quinteto dos anos 1960, ao lado de Herbie Hancock, Wayne Shorter e Tony Williams.

Em 2.221 discos, seria possível que alguma gravação, hoje, fosse rejeitada por esse que é o mais requisitado baixista de jazz da história, mas ele mesmo se apressa a responder. “Não, nenhum arrependimento. Todos os projetos nos quais eu me envolvi foi porque eu acreditava neles e sigo acreditando. Eles continham tudo que eu tenho como caros: atitude, afinidade, resultado, reconhecimento. Em todos eles, eu toquei o melhor que podia, não rejeito nenhum”, disse com exclusividade à CartaCapital, falando por telefone de sua casa, em Nova York.

Alguns discos nos quais tocou, no entanto, ele sempre destaca como especiais em sua trajetória e, curiosamente, dois deles são de brasileiros: o disco Stone Flower, de Tom Jobim, com quem gravou em 1970, e Entre Amigos, de Rosa Passos, cantora que acompanhou em 2003. Oito dias após completar 82 anos (ele nasceu no dia 4 de maio de 1937 em Ferndale, Michigan), Carter retorna ao Brasil, acompanhado de Russell Malone (guitarrista que já acompanhou Norah Jones e Harry Connick Jr., entre outros) e Donald Vega (pianista de origem nicaraguense, radicado desde os 14 anos nos Estados Unidos), para sua 26ª visita ao País, pelo qual desenvolveu notável admiração e afinidade musical.

Ele faz show único em São Paulo, oito dias depois do aniversário de 82 anos

Ron Carter (Foto: Takehiko Tokiwa)

Sobre o conceito de Tom Jobim e daquela geração da bossa, ele disse: “Todas as melodias que eles tocam, ou aquelas com as quais andei brincando por aí, permitem a si mesmas serem rearmonizadas e não perderem a essência daquela melodia específica. Amo esse tipo de coisa”. Já Rosa Passos ele define ainda mais apaixonadamente. “Rosa é uma cantora sublime e também sabe tocar violão. Nunca toquei com uma cantora tão sensível às minhas escolhas quanto ela foi. Sua linguagem corporal durante os playbacks me mostraram que ela ouvia as notas e os ritmos que eu tocava.”Há muitas parcerias memoráveis entre Ron Carter e o Brasil. Nos anos 1990, ele gravou o clássico Angelus,  Milton Nascimento, que contou ainda com Herbie Hancock, Robertinho Silva, Pat Metheny e Jack DeJohnette. Foi tocar em Ouro Preto para celebrar a música de Milton. Seu baixo esteve ao lado de Luiz Eça. Marcos Valle, Guilherme Vergueiro e, mais recentemente, Vitoria Maldonado (gravou com a cantora e pianista brasileira o álbum Brasil L.I.K.E., da Summit Records/Tratore, em 2018).

O contrabaixo de Ron Carter parece condensar toda a extensão da língua do jazz, e essa não é apenas uma impressão. Ele gravou com duos e big bands, esteve ao lado do jazz de vanguarda e do jazz romântico, fez discos de bebop e bossa nova, é um esplêndido arranjador e um líder de banda perfeccionista. “Quer saber como a bossa nova se incorporou à linguagem do jazz? Em que ponto um e outro se cruzam? Vá ao meu concerto em São Paulo, eu vou mostrar para você”, ele brinca.

Ron Carter passou a ser visto como referência no contrabaixo após o trompetista Miles Davis recrutá-lo para sua banda, no início dos anos 1960. Nos dias 16 e 17 de abril de 1963, eles gravaram o seminal disco Seven Steps to Heaven (Columbia Records). A primeira parte do álbum foi registrada com Victor Feldman no piano e Frank Butler na bateria, em Los Angeles. A segunda metade já seria um passo para a eternidade: Feldman e Butler foram substituídos por Herbie Hancock e o baterista Tony Williams. O saxofonista ainda era George Coleman, mas Wayne Shorter entraria no ano seguinte, 1964, fechando a lendária formação do quinteto. Em 2006, Ron Carter gravou um tributo ao grande parceiro, que batizou como Dear Miles (Blue Note).

Ele foi indicado quatro vezes ao prêmio Grammy, e o primeiro que ganhou foi em 1987 pela magnífica Call Sheet Blues, fruto de uma jam session com Wayne Shorter e Billy Higgins num intervalo da gravação da música para o filme Por Volta da Meia-Noite (Round Midnight, com direção de Bertrand Tavernier). Em 2010, Carter foi nomeado Commandeur dans l’Ordre des Arts et des Lettres pelo Ministério da Cultura da França. O baixista, que usa o mesmo instrumento acústico desde os anos 1960 (“é como se fosse um Bentley”, diz, comparando com o clássico automóvel britânico), também toca violoncelo, baixo elétrico, violino, trombone, tuba e clarineta.

Em 1970, Tom Jobim o convocou para a cozinha do disco Stone Flower

Sua curiosidade musical duraria umas duas vidas para ser satisfeita: em 2014, ele se juntou ao pianista Ethan Iverson, do elétrico trio Bad Plus, um expoente do jazz mais contemporâneo que se faz atualmente, numa série de concertos. Essa capacidade de se reformular constantemente já estava lá atrás também. No início da carreira, em 1960, no álbum Out There, ele deixou que o enfant terrible Eric Dolphy o movesse para o cello para explorar um novo mundo que só Dolphy ainda pressentia. “Ron Carter é a prova de que clareza e integridade ainda estão vivas no jazz”, disse certa vez o lendário produtor de discos do gênero John Snyder. “Às vezes, suas linhas de baixo respiram tão longamente que parecem provir do mais gentil dos trombones do mundo”, escreveu o crítico Jon Pareles, do New York Times.

Em 2012, Ron Carter participou de um famoso concerto de jazzistas para o então presidente Barack Obama, junto com Dee Dee Bridgewater, Roy Haynes, Ravi Coltrane e outros. Ao ser perguntado agora pela reportagem sobre o que faria se Donald Trump o convidasse para concerto semelhante, ele disse que responderia curta e polidamente: “Eu estou muito ocupado”. Além de educador, Ron Carter é também muito educado.

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