Cultura

Ricardo Darín, a cara do nosso tempo, estreia novo filme

O argentino, que atuou em mais de 40 produções ao longo de 47 anos de carreira, está em Um Amor Inesperado

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O filme Um Amor Inesperado começa com um homem numa biblioteca lendo as primeiras linhas do romance Moby Dick, de Herman Melville. “Alguns anos atrás – não importa precisamente quantos –, tendo pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e nada que me interessasse particularmente em terra firme, decidi navegar um pouco por aí e ver a parte aquosa do mundo. É um jeito que tenho de espantar a melancolia e regular a circulação do sangue.”

A parte do “nada que me interessasse particularmente em terra firme”, veremos a seguir, é o vácuo existencial que move os personagens de Um Amor Inesperado, a nova comédia romântica com o ator mais requisitado da América Latina, o argentino Ricardo Darín. A partir dali, Marcos, o personagem de Darín, vê-se às voltas com a partida do único filho, já adulto, e as mudanças por que passa a mulher, Ana (Mercedes Morán), após 25 anos de casados.

A crise do casamento, os erros dos relacionamentos em cadeia, o automatismo dos vínculos burgueses definitivos: mal comparando, Um Amor Inesperado é uma mistura de Sex and the City com O Casamento de Meu Melhor Amigo, uma fórmula cristalizada de idas e vindas no cinema e das sitcom americanas. Com condimentos argentinos (empanadas, bons vinhos, pesquisas de mercado, bibliotecas públicas) e regionais (uma das canções que tocam é Fogo e Paixão, do brasileiro Wando), a atmosfera de crise irresolvível de Um Amor Inesperado acaba sendo também uma metáfora da encruzilhada da geração de Darín, que lutou na arte latino-americana para abrir uma avenida para os mais jovens passarem e agora vê que não há essa avenida, que não existe segurança adquirida contra a barbárie, a vida é uma luta constante.

Estreia foi aos 15 anos e, de lá para cá, já são mais de 20 longas como protagonista

“O que acontece é que a crise pode ser consciente ou inconsciente, pode estar passando muito perto e a gente não tem a exata consciência, não se dá conta”, diz Darín. “O filme permite abordar um tema muito subliminarmente, que é o tema da individualidade. O que se passa conosco depois de uma relação de tantos anos – a relação de um casal nutre-se de muitas negociações, de tempo, de espaço, decisões, comidas, gostos e direções a tomar. O que acontece com um dos dois quando se apercebe que a sua singularidade de alguma maneira se modificou quando precisou pensar como o outro, sentir como o outro?”, avalia o ator.

Embora termine de forma esperada, Um Amor Inesperado é sério candidato a êxito, como acontece com a maioria dos filmes que Darín protagoniza há 47 anos, desde que estreou na tela. Há uma velha anedota em Buenos Aires que consiste em desafiar alguém a dizer o nome de um filme que não tenha Ricardo Darín no elenco (mais ou menos a mesma que fazemos aqui com Wagner Moura). Não é um humor nonsense: Aos 61 anos, o ator já apareceu em mais de 40 filmes, sendo protagonista em 20 longas-metragens. Está desde os 15 anos atuando, saga que iniciou em um pequeno papel em He Nacido en la Ribera (1972).

À esquerda, Darín e Mercedes Morán em Um Amor Inesperado; à direita, o ator com Javier Bardem e Penélope Cruz no thriller Todos Já Sabem, de Asghar Farhadi.

“O cinema me ofereceu uma oportunidade e eu a abracei”, diz Darín, uma das 928 personalidades do cinema mundial convidados para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood este ano. Darín, entretanto, reluta em atuar em inglês, porque fala mal a língua. Quando foi homenageado no Brasil por seu trabalho em prol dos direitos humanos, em 2010, na Cinemateca Brasileira, defendeu uma especificidade do cinema latino-americano que o motiva, “uma mistura de sensibilidade e bom humor”, marcas, por exemplo, do filme O Segredo de Seus Olhos (2009), que havia ganhado o Oscar poucos meses antes (antes, só A História Oficial, em 1985, tinha levado um Oscar para a Argentina). “Há algo que de alguma maneira nos identifica, que é o humor, a vocação de rir de nós mesmos, uma ingenuidade por sermos países jovens em termos democráticos”, afirmou na época. Dirigido por Juan José Campanella, O Segredo de Seus Olhos baseia-se em um romance de Eduardo Sacheri, e no filme Darín interpreta um agente judicial que se envolve em um feminicídio.

Filho de atores, Ricardo Darín começou a trabalhar cedo, no rádio e televisão, coisa que deixou de fazer há algum tempo. “A televisão exige muito e te dá pouco tempo para realizar isso”, explica. O cinema, por outro lado, não o pegou por causa de alguma suposta facilidade, mas justamente pelos desafios e pela possibilidade de ter mais tempo para desenvolver um personagem. “Vi muitos atores incomodados com esse método de trabalho do cinema, de ser tão atomizado, tão parcializado, a quantidade de planos e tomadas que uma mesma cena ou sequência pode requerer”, contou. “Você pode se perder nesse trabalho. Dificilmente o plano de rodagem de um filme se passa de forma ronológica. E aprende-se muito com a dinâmica de trabalho, com a frequência.”

Ele mesmo considera que só muito recentemente começou a dominar o território do cinema – seu reconhecimento internacional começou com o policial Nove Rainhas (2000), de Fabián Bielinsky, e O Filho da Noiva (2001), primeira indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro, que se repetiria com O Segredo de Seus Olhos e Abutres (2011). Em 2015, ele foi indicado ao Prêmio Goya do cinema espanhol por seu papel no filme Relatos Selvagens, dirigido por Damián Szifron.

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Para não perder o pique, esse começo de 2019 já marca uma pequena “Estação Darín” nas telas: além de Um Amor Inesperado, ele está em cartaz na Europa (e na Netflix) com o thriller Todos Já Sabem (Everybody Knows), do iraniano Asghar Farhadi, filmado na Espanha, na França e na Itália. Pela primeira vez, Darín contracena com outros dois astros do cinema latino, Javier Bardem e Penélope Cruz, marido e mulher. Após a filmagem, ele elogia principalmente Penélope, definindo a experiência como “comovedora”.

No filme, Penélope é Laura, que volta à Espanha natal com dois filhos, a adolescente Irene e o menino Felipe, para a festa de bodas de uma irmã. O marido, Alejandro (Darín), fica em Buenos Aires. Na cidadezinha, Laura reencontra Paco (Bardem), que foi namorado de adolescência. Em meio a esse clima de reencontros, a filha de Laura é sequestrada e os sequestradores pedem 300 mil euros de resgate. A princípio, Darín recusou o convite do iraniano Asghar, porque tinha uma peça de teatro em circulação pela Espanha e com várias datas já fixadas. Mas cedeu pela amizade ao casal Bardem e Penélope.

“É uma atriz incrível. Eles nos chamavam sempre às 7 da manhã no meio da serra para gravar, e ela, que é mãe de dois filhos pequenos, não apenas chegava com toda a energia como também com muitas ideias para cada cena. E dividia comigo para ver se eu concordava. Com o diretor Asghar cuidamos para que cada frase, cada palavra, soasse com perfeição, tendo em conta que seu personagem é o de uma espanhola que vive há muitos anos na Argentina”, contou.

No thriller Todos Já Sabem, o ator testa a amizade e o talento do casal Javier Bardem e Penélope Cruz

Como no filme Um Amor Inesperado, Darín tem um filho que se tornou, ele mesmo, autônomo: Ricardo Mario Darín Bas, o “Chino” Darín, agora com 30 anos. Chino é já considerado uma revelação do cinema pela atuação em Uma Noite de 12 Anos, a história da prisão do estadista uruguaio Pepe Mujica. Diz que fica feliz porque o filho venceu sem usar o sobrenome, sem “pistolão”, influência externa. “Ele participou de muitos testes por sua própria conta, foi recusado em muitos deles e não desistiu”, conta. “Estou feliz por ele, porque está fazendo um caminho próprio, de uma forma muito amável e autêntica.” Darín acabou se tornando sócio do filho na produtora que este acaba de fundar.

Mas não é só de louros que vive a trajetória do ator mais requisitado da Argentina. Há também problemas. No início do ano, a ex-modelo argentina Romina Seferián acusou-o, em um programa de tevê, de ter praticado assédio sexual contra ela em 2011, durante uma festa em um boliche, e que, ao se dar conta de que Darín a tocava por sob a calça, a mulher do ator, Florencia Bas, teria tentado agredir a modelo, que tinha 22 anos na época, com uma garrafa de cerveja. Naquele ano, 2011, Romina já havia relatado a situação de violência, mas não tinha feito menção ao suposto abuso de Darín. Interpelada, Florencia contou que, naquela noite, a modelo dançava sobre a mesa e se jogou sobre Darín, e que os seguranças tentaram tirá-la de forma truculenta – o ator interveio para impedir violência.

O relato de Romina Seferián foi desqualificado por muita gente, incluindo o filho Chino (que estava no boliche e lembrou que ela chamou o pai de “cavalheiro” na imprensa), mas teve também um apoio importante: a atriz Érica Rivas, que contracenou com Darín em Cenas da Vida Conjugal (2015, baseado em Ingmar Bergman), disse acreditar na ex-modelo e contou que, durante as filmagens, recebeu maus-tratos e gritos fortes do ator ao longo do trabalho. Os alçapões da fama não escolhem o momento de testar o Olimpo quebradiço das reputações.

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