Cultura

Renasci

A historinha do primeiro e renegado conto

Foi assim que abandonei a ideia de trabalhar com bisturis para trabalhar com máquinas de escrever
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Por volta de sete horas da manhã, o mensageiro, montado num cavalo branco, chegou com a notícia. Pulei da cama patente quando a tramela virou e a porta se abriu. Era Leninha com a novidade.

– Seu irmão pediu pra você ligar pra Belo Horizonte!

Pensei logo na morte de alguém. Só podia ser, aquela hora da manhã.

A Fazenda do Sertão ficava no interior de Minas Gerais, tão interior que não havia luz elétrica, telefone, geladeira, nada disso. Até o café adoçávamos com rapadura porque açúcar refinado não havia ali.

Pegando carona no mesmo pangaré do mensageiro, fui até o povoado de Soberbo, onde havia um único telefone, e pedi uma ligação pra Belo Horizonte. Época que, para falar interurbano, era preciso pedir uma ligação.

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A noticia chegou pela voz do meu irmão, do outro lado da linha.

– Você ganhou um concurso de contos no Paraná!

Gelei.

Tinha eu dezenove anos de idade e me preparava para ser doutor. Fazia um cursinho para medicina quando vi, num canto de página na revista Realidade, um anúncio do Concurso de Contos do Estado do Paraná.

Sentei na Remington do meu pai, coloquei três folhas de papel A4 e dois carbonos. Era o que exigia o regulamento do concurso, um original e duas cópias legíveis.

Escrevi um conto chamado Nasci, que começava assim:

Era novembro de 1949, um domingo. Talvez o lugar mais perto fosse infinitamente longe daquele barraco de zinco feio e pobre. Chovia muito e os pingos no telhado pareciam pedras atiradas numa vidraça, fazendo um barulho horrível. Meu pai estava em Leningrado desde janeiro e minha mãe por aqui, só, mordiscando a ponta do lápis toda vez que riscava mais um dia na folhinha dependurada atrás da porta da cozinha.

No conto, narrava a minha história dentro da barriga da minha mãe, uma saga que durou exatos nove meses.

Arrumei a mala de couro e fui-me embora para a capital, num velho ônibus da Viação Pioneiro. Foram algumas horas de buracos e comendo poeira até chegar na rodoviária de Belo Horizonte.

Pela janela, via as montanhas lá longe e não podia imaginar o que estava por vir. Não havia contado pra ninguém, nem mesmo da família, que estava participando de um concurso de contos. Meus pais, meu irmão, minhas irmãs, avó, tios, tias, primos, ninguém sabia da existência desse menino que escrevia.

Na rodoviária, vi a noticia na primeira página do Estado de Minas, dependurado na banca de jornal.

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Com o autor refugiado de férias numa fazenda, entrevistaram o meu irmão que declarou solenemente: “Ele ia fazer vestibular para Medicina mas agora, acredito eu, que com essa vitória no Paraná, vá fazer Jornalismo”.

Foi assim que abandonei a ideia de trabalhar com bisturis para trabalhar com máquinas de escrever.

Peguei o primeiro avião pra Curitiba e lá fui eu, de terno e gravata, receber o prêmio. Se a memória não falha, um prêmio de 2 mil cruzeiros, uma pequena fortuna na época, para quem ganhava um salário mínimo como Escrevente Datilógrafo no Ministério da Agricultura, meu primeiro emprego.

Voltei todo animado pra minha terra e na primeira entrevista declarei, ao mesmo Diário de Minas: “Com parte do dinheiro, vou comprar um jipe para viajar pelo Brasil!”

Nasci foi publicado numa revistinha underground de BH, a BelContos, e só. Sempre reneguei aquela primeira experiência literária, nunca vi valor nela, também nunca entendi o porquê.

Arrumando o meu baú, deparei com velhos exemplares da BelContos e resolvi reler Nasci. Continuo renegando. Acho que nem mesmo meus filhos já leram o conto premiado. Li, reli, e tomei a decisão de reescrevê-lo, metido a Murilo Rubião.
Um dia, quem sabe eu o publico aqui na Carta Capital?

Agora, quanto ao jipe, nunca comprei. Na verdade, nunca dirigi um automóvel nessa minha vida de escritor.

 

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