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Refundar a Funarte

Maria Marighella, a presidente da instituição, tem o desafio de viabilizar as artes por toda a extensão do País

Colosso fragilizado. “Já vínhamos num processo de depreciação institucional, que foi agudizado a partir da extinção do Ministéro da Cultura”, diz a nova gestora – Imagem: Amanda Tropicana
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A Fundação Nacional das Artes (Funarte) é um colosso que abarca uma contradição: tem um papel tão relevante na cultura brasileira que é difícil dar clareza de sua dimensão para a população. Criada em 1975, é uma instituição mais antiga que o Ministério da Cultura – constituído dez anos depois.

Resumidamente, a Funarte tem, desde a sua origem, o papel crucial de capilarizar as artes pelo território brasileiro, capitaneando projetos, equipamentos e editais de alcance nacional. Há muito tempo, no entanto, sua capacidade de ação não é compatível com a sua missão.

Empossada na presidência do órgão há cerca de dois meses, Maria ­Marighella sabe o desafio que é fazer esse colosso voltar a ter a função estratégica que lhe cabe. “A reconexão da Funarte com o Brasil é urgente. Tenho insistido na tese de que só cuidamos daquilo que amamos, e só amamos aquilo que conhecemos”, diz Maria, que coordenou a área de Artes Cênicas da instituição entre 2015 e 2016, é vereadora licenciada em Salvador e, como o sobrenome dá pista, neta do guerrilheiro Carlos Marighella. “Queremos mostrar o potencial dessa instituição e comemorar seus 50 anos, em 2025, em grande estilo.”

Além de apoiar projetos por meio de editais, dentro do que se chama, na política pública, de fomento direto, a ­Funarte trabalha com o MinC no Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), baseado em incentivo fiscal. Para se ter uma ideia, 65% dos projetos – em especial das áreas de dança, circo, teatro, música e artes visuais – viabilizados por meio do mecenato passam pela instituição. Há também a dimensão de memória: o centro de documentação, o Cedoc, guarda material físico e audiovisual da produção artística do País de várias épocas.

Há muito tempo, a capacidade de ação da Funarte não é compatível com a sua missão

Todos os pontos-chave – territorialização, fomento direto e indireto, memória institucional e das artes – estiveram mais ameaçados do que nunca nos últimos quatro anos. Ao longo do governo Bolsonaro, pelo menos cinco presidentes passaram pelo órgão, com direito a um coronel do Exército e um maestro que já disse que o rock leva ao satanismo. Um assessor técnico chegou a emitir um parecer contrário à captação de recursos via Lei Rouanet para um tradicional festival de jazz, pelo fato de o evento ser definido nas redes sociais como “antifascista e pela democracia”.

O orçamento também estava em queda livre, como aconteceu com praticamente todas as instituições da cultura no período. Maria conta que, ao assumir o cargo, se deparou com uma verba que dava conta, basicamente, da manutenção da estrutura. A casa acabava limitando-se a operar recursos de lei de incentivo e de emendas parlamentares. O investimento em políticas específicas estava ­absolutamente comprometido.

Para este ano, o orçamento é de cerca de 160 milhões de reais, mais que o dobro que o de 2022. Neste primeiro momento, o órgão está sanando uma dívida de 6 milhões de reais da gestão anterior (de editais não pagos, por exemplo) e se organizando para retomar ações consideradas estruturantes, como festivais, e o investimento em grupos e coletivos artísticos e equipamentos culturais. A lista de ­demandas, ainda em curso, é longa e complexa. A Escola Nacional do ­Circo, para se ter uma ideia, ficou sem lona.

É bem verdade que não dá pra botar todos os problemas na conta do governo Bolsonaro. Muitos deles vêm de bem antes, e já eram conhecidos de Maria, por sua passagem pela coordenação de Artes Cênicas. Outro exemplo é a segurança do acervo do Cedoc, há décadas motivo de preocupação. “Já vínhamos de um processo de depreciação institucional, que foi agudizado a partir da extinção do Ministério da Cultura”, aponta Maria, referindo-se à transformação do MinC em uma secretaria no início do governo Bolsonaro, em 2019.

Lista. A retomada do Palácio Capanema (à dir.) e as melhorias em equipamentos como a Escola Nacional de Circo (abaixo) estão entre as prioridades da nova gestão – Imagem: Alexandre Macieira/Riotur e Alexandre França

A violência contra a cultura foi grande, e precisava de reação à altura, diz ela: “E que fosse rápida, pois o País está faminto. No caso da Funarte, com a readequação orçamentária, o presidente deu materialidade à retomada”.

Por isso, avalia Maria, a reação precisa vir em níveis diferentes. Os primeiros passos foram dados, com o restabelecimento do Ministério, a valorização dos servidores (“que seguraram as pontas, muitas vezes na marra”, diz ela) e até mesmo com as posses festivas. A dela, realizada em 2 de março, na Sala Cecília Meireles, no Rio, teve até cortejo carnavalesco na rua. A volta da pasta remete, na visão da gestora cultural baiana, à sua criação no período de redemocratização, nos anos 1980. “O MinC é, de novo, o símbolo da retomada da democracia brasileira”, diz.

O simbolismo precisa, contudo, vir associado a medidas objetivas. Nesse sentido, foram cruciais, para o futuro do MinC e de suas entidades vinculadas, a publicação do decreto que reorganiza a Lei Rouanet e a criação das bases para a implementação das Leis ­Aldir Blanc 2 e Paulo Gustavo – esta última regulamentada na semana passada, em cerimônia em Salvador, com a presença da diretoria colegiada da Funarte.

Maria, que fez parte da equipe de transição de Cultura e conhecia a ministra Margareth Menezes “mais como fã”, diz ter entendido o convite para assumir a Funarte como um chamamento – “para usar a palavra de um texto célebre do meu avô”, completa.

A missão que lhe foi dada é não apenas a de retomar as políticas do órgão, mas a de fortalecer sua atuação em relação ao fomento indireto, ou seja, aos projetos patrocinados por empresas. “O secretário (de Fomento) Henilton Menezes tem defendido que a Funarte levante dados sobre os projetos contemplados por incentivo fiscal, os territórios que alcançam, até para poder pensar nas necessidades do fomento direto”, conta.  O clima de rearrumação se dá, inclusive, no local de trabalho da Funarte.

“A reconexão da Funarte com o Brasil é urgente”, afirma Maria Marighella

A equipe do Rio está numa sede provisória, em um prédio na Cidade Nova, porque o Palácio Gustavo Capanema, no Centro, está fechado para obras há anos. Tentando dar a sua cara à sala que ocupa, Maria colocou à frente da porta um capacho com os dizeres “Racistas não passarão”. Outra sede, na Rua São José – que até pouco tempo abrigou o Cedoc –, foi esvaziada por conta de problemas estruturais graves.

Mas as coisas estão andando, garante Maria, e a retomada do Palácio Gustavo Capanema está programada para 2024. O edifício, um marco da arquitetura moderna que correu o risco de ser leiloado por iniciativa do ex-ministro da Economia Paulo Guedes, é uma das prioridades do Iphan para este ano. Além de abrigar o órgão do patrimônio e a Funarte, também voltará a receber o Ibram, parte da Biblioteca Nacional e o escritório regional do MinC. Voltará a ser uma espécie de casa das políticas públicas de Cultura.

No caso do Cedoc, o acervo foi recentemente direcionado à Casa da Moeda. “Faz sentido estar lá, até porque o Cedoc é um tesouro do Brasil. E ali temos uma dupla tarefa, que é guardar bem aquilo que se tem, e ambicionar aquilo que não se tem. Sem nenhum desprezo ao que a gente tem, é preciso ampliar o alcance”, afirma ela. “Nossa memória é multi, é negra, é indígena, precisa ter o tamanho do Brasil.”

A equipe também precisa levar em conta a pluralidade. As duas últimas nomeações de Maria mostram essa preocupação: a curadora indígena Sandra Benites assumiu a coordenação de artes visuais, enquanto Laís Almeida, jovem negra com formação em gestão cultural, está à frente da pasta de projetos. “A presidência apoia-se numa diretoria colegiada, e é importante que a diversidade tome assento nesses espaços de decisão.” •

Publicado na edição n° 1260 de CartaCapital, em 24 de maio de 2023.

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