Cultura

Quem ganha no final de Jogos Vorazes?

A recusa de Katniss em fazer parte do jogo já é fazer parte do jogo: ela luta ativamente pela possibilidade de escrever o próprio destino

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Começa como um reality show em que adolescentes são jogados numa arena para lutarem entre si até a morte. Termina como uma história sobre guerra, revolução e poder. Se isso te parece violento e político, bem, é porque é.

O sucesso estrondoso de “Jogos Vorazes”, série de filmes estrelados por Jennifer Lawrence, uma adaptação da série de livros escritos por Suzanne Collins, indica que essa trilogia não chama a atenção só por ser uma superprodução protagonizada por uma atriz com um Oscar no currículo; mas também por ser uma história que realmente tem o que dizer. 

Há quem torça o nariz para algo tão popular, enquanto outros possam achar que uma história sobre e para adolescentes, com uma jovem mulher como protagonista, só pode ser algo raso ou no máximo um pretexto para um romance bobo. 

No caso de “Jogos Vorazes”, lançar essa flecha é errar muito no alvo: quem mergulha na história logo percebe que há uma mensagem séria e política por trás da jornada de Katniss.

Em Jogos Vorazes: A Esperança – Parte 2, que estreou nos cinemas brasileiros agora em novembro, vemos o ponto final da saga de Katniss Everdeen: de garota pobre que caça no mato para poder comer, ela vai de vencedora dos Jogos Vorazes e celebridade em Panem, até o símbolo da revolução que busca acabar com a tirania do Presidente Snow.

Então o último capítulo dessa história vem pra coroar a jornada da heroína, depois de tanta desgraça generosamente distribuída em cada uma das partes da trilogia, certo? É um filme sobre sua vitória, certo? Pode ser o que se espera de um desfecho, mas com “Jogos Vorazes” as coisas nunca são tão simples.

A segunda parte de “A Esperança” vem para concluir, mas também para relembrar. Mesmo indo para a guerra de arma em punho, o papel de Katniss não é o de soldado, mas de ser a voz da revolução; um rosto, um símbolo. Se ela vai para a ação, toda uma equipe de filmagem acompanha ela, dão a ela discursos prontos, planejam suas aparições de forma a motivar os rebeldes a continuarem lutando – e ela não se sente nada confortável com esse papel. 

E não é exatamente o que acontece desde o início? Quando ela se voluntaria para os Jogos Vorazes no lugar de sua irmã, sua vida e sua imagem são apropriadas para o entretenimento da Capital. Quando ela vence os jogos, sua imagem continua a ser explorada, até ela de novo desafiar a Capital e se unir aos rebeldes. Como o Tordo, sua imagem é novamente explorada, dessa vez pela líder dos rebeldes, Alma Coin, para atacar o poder vigente.

É um mundo que espetaculariza a violência, não muito diferente do nosso, pensando bem. Um mundo em que mídia é poder – e tem tanta capacidade de destruir quanto bombas e estratégias de guerra.

Logo no início desse último filme há uma cena em que um homem do Distrito 2, rendido pelos rebeldes, consegue se aproximar de Katniss e ameaçá-la com uma arma. Ele pede um motivo para que ele não a mate. Ela não tem. Ela só devolve com uma pergunta: se ele a matar, ou o contrário, quem ganha com isso?

“Quem ganha?” é uma pergunta emblemática. Se nos Jogos Vorazes, o espetáculo idealizado por Snow, mesmo o jovem sobrevivente não pode ser considerado ganhador – quem ganha é sempre Snow, a Capital, quem tem o poder – na guerra isso não é diferente. A guerra é um jogo que não admite vencedores.

É por isso que Katniss, desde o primeiro filme, se nega a fazer parte do jogo. Ela se recusa a ser uma peça no tabuleiro, não importa de quem seja a mão que a manuseia: de Snow ou de Coin – que acabam se mostrando dois lados diferentes da mesma moeda, capazes de sacrificar inocentes para alcançar o poder.

A recusa de Katniss em fazer parte do jogo já é fazer parte do jogo: ela luta ativamente pela possibilidade de seguir o próprio caminho e escrever o próprio destino. Não escolher um lado já é se posicionar. E ela se posiciona pelo fim desse ciclo de violência.

Isso a torna diferente do papel tradicional de herói a que estamos acostumados, que usam a violência como arma para serem vitoriosos? Talvez. Mas é justamente isso que a torna uma heroína tão inspiradora. 

Apesar de ser revestida por esse título, Katniss sabe que não é vitoriosa. Como alguém pode ganhar em um cenário onde todos estão uns contra os outros? Um adolescente matando o outro numa arena, um distrito guerreando contra o outro, as bombas dos rebeldes contra os civis da Capital, Peeta contra Katniss, Katniss contra Alma Coin – e Snow dando risada disso tudo.

Peeta se voltar contra Katniss ainda na parte 1 de “A Esperança”, na tentativa de matá-la quando sofre uma lavagem cerebral na Capital, é o que melhor representa essa situação. Até aliados e pessoas que amamos podem ser usadas contra nós, enquanto o inimigo fica firme e protegido, bem longe de toda essa bagunça.

Não é por acaso que Katniss precisa lembrar o tempo todo quem é o verdadeiro inimigo: “mirem suas armas para Snow”. Um lembrete para nós mesmos: será que não estamos desperdiçando energia lutando uns contra os outros? Onde está o verdadeiro inimigo? É possível vencê-lo no tabuleiro que ele mesmo criou?

Por isso entendo que este não é um filme de glória, triunfo ou esperança, como sugere o título; é um filme trágico que nos expõe à impossibilidade de vencer quando a política é fundada na violência.

É possível ver o filme para curtir os efeitos especiais e as empolgantes cenas de luta, para ver “quem vence no final”, quem morre e com quem Katniss decide ficar; mas para além de toda a torcida e do que a tela mostra na superfície, é possível ter uma leitura mais profunda e ver que as reflexões da história alcançam nossa própria vida e o mundo onde vivemos.

Se tem uma conclusão certa que o desfecho de “Jogos Vorazes” nos mostra é: os jovens de hoje, principalmente as garotas, que agora têm Katniss como referência, estão muito bem servidos de histórias para que possam pensar em temas como política e desigualdade social de forma mais crítica.

Quem sabe assim, no futuro, possamos construir um mundo mais justo. Bem diferente de Panem, de preferência.

 

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Assista ao trailer:

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