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Quando o insólito se torna pop

A mais recente coletânea de contos do autor japonês Haruki Murakami é exemplar dos interesses e inquietudes de uma grife da literatura contemporânea

Tema e forma. A música e o próprio ato da escrita servem de matéria-prima para o escritor, que se equilibra com maestria entre o real e a fantasia – Imagem: Ivan Giménez/Tusquets Editores
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O japonês Haruki ­Murakami é, no cenário da literatura contemporânea, um dos autores que mais bem transita entre o real e o insólito. Seja nos romances, como Kafka à Beira-Mar, seja nos contos, ele se equilibra com maestria entre os dois universos. Sua mais recente obra lançada no Brasil, a coletânea Primeira Pessoa do Singular, só confirma essa capacidade.

Murakami é o nome mais famoso da literatura de seu país atualmente. Embora seus livros tratem de temas universais – como, diga-se, sempre acontece às obras capazes de viajar –, há neles também muito daquilo que é particular do Japão.

A trajetória de Murakami no mundo das letras teve início em 1979, mas foi em 1984, com A Crônica do Pássaro de Corda, que começou a chamar a atenção. Nesse romance, ele, pela primeira vez, abordou questões sociais. De lá para cá, ­Murakami foi se tornando um escritor pop, o que, em seu caso, não quer dizer superficial.

Sua escrita dialoga com o Ocidente, inclusive, por meio da cultura – em especial, da música e do cinema. Os ­Beatles, por exemplo, são um elemento recorrente em seus livros. A banda inglesa é a favorita de uma das personagens de Norwegian Wood, romance publicado originalmente em 1987, cujo título vem de uma música da banda.

A presença da música na obra de ­Murakami reflete um dado biográfico do autor. Nos anos 1970, antes de se tornar escritor, ele foi dono de um clube de jazz. Essa experiência é contada em detalhes em Do Que Falo Quando Falo de Corrida, um livro de memórias, publicado pela primeira vez no Japão em 2007.

PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR. Haruki Murakami. Tradução: Rita Kohl. Alfaguara (168 págs., 59,90 reais)

A música aparece novamente em seu mais recente lançamento. No conto ­With the Beatles, o mais bonito e o mais longo de Primeira Pessoa do Singular, o escritor narra uma história de amor fraturada – outro tema caro à sua obra –, no ápice da beatlemania.

O conto, que atravessa algumas décadas, traz uma reflexão sobre o processo de amadurecimento por meio das lembranças de um primeiro amor. “O mais estranho de envelhecer não é eu estar envelhecendo […] O que mais me surpreende é perceber que as outras pessoas da minha geração agora são velhas.”

A partir desse começo, o narrador passa a investigar o correr dos anos em sua vida, tendo como mediador um amor estranho que viveu em 1964. Só no presente ele descobrirá o que aconteceu com a menina por quem se apaixonara.

Como aponta o título, os oito contos do livro são narrados na primeira pessoa do singular. A escolha faz com que, em alguns momentos, cogitemos se tratar de histórias verídicas vivenciadas pelo próprio Murakami. Mas isso pouco importa. O que interessa aqui é a forma pela qual ele trabalha personagens e experiências, dando vida ao passado e ao presente.

“Para escrever um romance, tenho de exigir muito de mim, fisicamente, e despender um bocado de tempo e esforço”, diz ele em Do Que Falo…. Na forma conto, cuja escrita talvez seja menos extenuante, Murakami encontra certa leveza – é isso, ao menos, que a coletânea indica.

Embora o realismo seja uma força presente na maioria dos textos, o surrealismo, tão comum em sua obra, dá o ar da graça em A Confissão do Macaco de ­Shinagawa, no qual o animal se torna amigo do narrador e conta para ele sua história. O fato de o macaco falar é tomado com certa naturalidade e, conforme o leitor se habitua a esse estranhamento, abrem-se várias janelas de compreensão para o conto.

Traduzido direto do japonês por Rita Kohl, Primeira Pessoa do Singular pode não ser exatamente singular no conjunto da obra do escritor, mas é, ainda assim, exemplar dos interesses e inquietudes dessa grife da literatura contemporânea. •


VITRINE

Há algo da atmosfera de A Infância dos Mortos, o livro que deu origem ao filme Pixote (1980), em Os Detetives da Linha Púrpura (Companhia das Letras, 376 págs., 89,90 reais), escrito pela indiana Deepa Anappara. Mas, aqui, à camada áspera da realidade, somam-se a fantasia e o suspense.

A Marcação (Fósforo, 280 págs., 74,90 reais), romance de estreia da ­islandesa Fríða Ísberg, seria distópico se tivesse sido escrito no século XX. Mas, hoje, a história na qual a tecnologia aparece como uma extensão dos seres e o mundo ­surge dividido por um muro de acrílico parece apenas espelhar a realidade.

Resultado de uma exposição realizada em São Paulo, Hélio Melo (Almeida & Dale Galeria de Arte, 287 págs., 110 reais) é um registro precioso da obra e da trajetória desse artista nascido no Acre, em 1926, e que, dos seringais onde trabalhou, extraiu a paisagem de sua criação.

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Quando o insólito se torna pop’

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