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Por trás dos algoritmos

Um novo relatório da Ancine sobre o mercado de streaming no Brasil pode subsidiar a regulação do setor

Catálogo. Filmes independentes brasileiros, como Retratos Fantasmas, licenciado pela Netflix, representam 9% dos títulos disponíveis nas plataformas – Imagem: Vitrine Filmes/CinemaScopio
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Quinze dias após o presidente Lula ter sancionado dois Projetos de Lei que estabelecem a obrigatoriedade de exibição de obras brasileiras nas salas de cinema e na televisão por assinatura, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) divulgou o Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda no Brasil relativo a 2023.

O estudo, que mapeia as plataformas acessíveis no País e foi divulgado na terça-feira 30, tende a servir de bússola para o estabelecimento de regras relativas à presença de filmes e séries brasileiros também no streaming.

Embora esse segmento concentre boa parte do consumo audiovisual, ele ainda está fora do arcabouço legal do setor, e sua regulação se anuncia como a principal batalha legislativa do meio cultural a ser enfrentada este ano no Congresso Nacional. O que o relatório demonstra, de forma detalhada, é o tamanho e o perfil do conteúdo local nas plataformas.

Pela primeira vez, dados da BB ­Media – empresa internacional que monitora o streaming no mundo e com a qual a Ancine havia trabalhado em 2022 – foram cruzados com as bases de dados de Certificado de Produto Brasileiro (CPB), um registro emitido pela agência para obras a serem comercializadas. A partir do CPB, o relatório incorporou informações relativas, por exemplo, a gênero, formato e natureza do projeto – se é ou não uma produção independente brasileira e a quem pertencem os direitos sobre ela.

O cenário que emergiu do levantamento tem duas características significativas: a baixa presença de obras independentes brasileiras na maioria dos catálogos e a evidente predominância dos longas-metragens sobre as obras seriadas. O baixo número de séries é algo surpreendente quando se pensa no papel que o formato teve, por exemplo, na constituição da Netflix.

O relatório analisa 62 plataformas, sendo apenas 15 delas brasileiras. Desse total, 43 operam na modalidade por assinatura, 33 oferecem acesso gratuito e 14 trabalham com modelos de aluguel e venda. Apenas no modelo por assinatura foram contabilizados cerca de 60 mil títulos disponíveis para o público.

As obras não seriadas – em sua grande maioria filmes –, além de predominar em todas as plataformas, representam praticamente 100% da oferta feita pelas que trabalham com aluguel e venda. Uma das exceções, curiosamente, é a GloboPlay, onde as séries correspondem a 61,7%.

O que isso significa? Que o longa-metragem, formato cuja carreira comercial, historicamente, começava na sala de cinema, é também o principal produto do ­streaming. Dentre os filmes disponibilizados, a maioria foi feita na última década.

Para o levantamento sobre a presença de obras brasileiras, a Ancine estabeleceu um recorte que leva em conta o perfil das 62 plataformas analisadas. Com isso, apenas 24 delas foram incluídas nessa análise específica.

E o que se descobriu, na amostra, é que o conteúdo nacional (com CPB) corresponde a 9% do total. Tal porcentual é alterado quando se exclui da conta todo o conteúdo cuja nacionalidade não pôde ser definida no estudo. Nesse caso, a participação dos filmes e séries brasileiros aumenta para 14%.

As plataformas com menor presença do conteúdo doméstico são, de acordo com a Ancine, Star+ (3,0%), HBOMax (2,7%) e Disney+ (1,3%). Dentre as grandes plataformas – ou seja, excetuados os serviços de nicho –, a que maior presença nacional ostenta é a Globoplay, com 35,2% .

Fonte: OCA/Ancine

Esses dados ganham especial relevância quando se sabe que há dentro do governo, neste momento, o desejo de se tentar, no processo de regulação do Vídeo por Demanda, defini-lo como um “serviço de comunicação audiovisual”, e não, simplesmente, como uma nova tecnologia ou forma de fruição. Um serviço de comunicação, por sua natureza, tem uma série de obrigações legais.

Tal defesa ficou evidente na apresentação de Paulo Alcoforado, diretor da Ancine indicado pelo governo Lula, em um debate realizado no 2º Fórum de Tiradentes – Encontros pelo Audiovisual Brasileiro, no dia 22 de janeiro. Alcoforado quis frisar, para uma plateia marcadamente ligada à produção independente e autoral, que, embora a decisão do que ver e a que horas ver, esteja nas mãos do usuário, as plataformas fazem o que se pode chamar de curadoria.

“Há regras para a inclusão de conteúdos em qualquer catálogo, mesmo os das plataformas, e, especialmente, para seu destaque e proeminência na apresentação ao usuário”, afirmou. “É o provedor que faz essa escolha, licencia os conteúdos para o usuário, organiza o serviço e expõe os conteúdos.”

Isso implica, na visão dele, a necessidade de instrumentos regulatórios que contemplem exigências relativas a conteúdos brasileiros específicos para cada tipo de serviço. “Cotas para serviços com prateleiras mais abertas, como as das plataformas, tendem a não ter nenhuma efetividade”, admitiu. “Em contraponto, os conteú­dos desses mesmos produtos dependem da exposição em lugar de proeminência no serviço para ser vistos e remunerados.”

Opiniões de cada segmento do audiovisual à parte, o fato é que o Panorama oferece parte dos subsídios necessários para que a regulação tome por base a rea­lidade, e não impressões difusas. •

Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital, em 07 de fevereiro de 2024.

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