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Para começar, desatar os nós

A reconstrução envolve o reordenamento legal do setor, atravancado por INs e decretos

Recomposição. Findo o segundo turno, foi aberta a bolsa de apostas para a pasta hoje extinta. Os mais citados são Daniela Mercury, Jandira Feghali e Juca Ferreira - Imagem: Inácio Teixeira/Prefeitura de Salvador, Pedro Rocha e Fernando Frazão/ABR
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Em seu primeiro discurso depois de eleito, Lula afirmou que o povo brasileiro “quer ir ao teatro, ver cinema, ter acesso a todos os bens culturais” e prometeu recriar o Ministério da Cultura.

Horas mais tarde, ao falar para uma multidão na Avenida Paulista, em São Paulo, ele mencionaria outras três vezes a cultura. “A cultura é uma dimensão estratégica do processo de reconstrução democrática do País e da retomada do desenvolvimento sustentável”, insistiu.

Foi, de fato, sob o governo Lula que o Ministério da Cultura (MinC) ganhou, duas décadas atrás, uma relevância simbólica até então inédita. Ao assumir a pasta, em 2003, o músico Gilberto Gil fez barulho, protagonizou embates e alterou estruturas – procurando redistribuir verbas até então mais concentradas.

À altura, o documento Imaginação a Serviço do Brasil, que continha o programa de governo, reservava 20 páginas para a cultura e defendia algumas pautas específicas, como a descentralização de recursos. No programa da chapa Lula-Alckmin, as referências ao setor, embora enfáticas na forma, são breves e genéricas no conteúdo.

Se, no plano geral, Lula afirmou ser necessário olhar “mais para aquilo que nos une do que para as nossas diferenças”, no campo da cultura, a ideia não parece ser outra. Os enfrentamentos que marcaram a primeira gestão do PT no governo federal, tendem agora a dar lugar a uma postura conciliatória.

“Vamos precisar fazer uma discussão séria e integral do setor cultural, sem demonizar ninguém e nenhum mecanismo”, diz Márcio Tavares, secretário de Cultura do PT e coordenador da área durante a campanha. “Precisamos ter um sistema funcional, que disponibilize os incentivos para quem precisa deles, caso dos programas ­anuais de museus e orquestras, o Fundo Nacional de Cultura para atender um público amplo e ainda os Ficart.”

Tudo isso está previsto na Lei nº 8.313, promulgada pelo ex-presidente Fernando Collor em 1991. Essa lei instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que se baseava num tripé: o Fundo Nacional da Cultura (FNC), os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) e, por fim, os incentivos fiscais, que, com o tempo, se tornaram sinônimo da célebre Lei Rouanet.

Os Ficart nunca foram implantados e o FNC, destinado, sobretudo, aos pequenos produtores e artistas, tem, há anos, boa parte dos recursos contingenciados. Vêm do FNC, por exemplo, os recursos das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc – criadas no contexto da pandemia de Covid-19. O repasse desses recursos para Estados e municípios foi, porém, adiado por causa de uma Medida Provisória editada em agosto por Bolsonaro.

“É necessário, em primeiro lugar, revogar essas INs”, defende Márcio Tavares, do PT

A Lei Rouanet, por sua vez, está emperrada porque, primeiro, a Secretaria Nacional de Cultura não tem aprovado os projetos para que eles possam captar recursos, e, depois, porque estão em vigor duas Instruções Normativas e um decreto publicados entre 2021 e 2022 que, na prática, inviabilizam o mecanismo.

“É necessário, em primeiro lugar, revogar essas INs. É impossível operar os mecanismos com os decretos publicados por este governo”, confirma Tavares. “A revogação das INs depende do ministério e a alteração dos decretos, de uma iniciativa presidencial.”

Uma das questões que se colocam, na Lei Rouanet, é que o prazo para a utilização do Imposto de Renda relativo ao exercício fiscal de 2022 é 31 de dezembro. Até esse dia, André Porciúncula – e, talvez, Mário Frias, cujo retorno à Secretaria de Cultura não está descartado – será o capitão no comando das aprovações de projetos culturais.

Embora a transição ainda não tenha começado, Tavares diz que, ao longo da campanha, a coligação foi tomando contato com o tamanho da confusão que os espera. “O número de servidores na secretaria é muito pequeno, menor do que qualquer outro momento, inclusive, porque houve um regime de perseguição e muita gente saiu”, diz. “Não vai ser só retomar o nome e a estatura. Vamos ter de recompor toda a estrutura, corroída e depauperada.”

Nesta primeira semana pós-segundo turno, as especulações em torno dos nomes a serem escolhidos para estar à frente da missão de recriação e reestruturação do MinC foram várias. Há, no entorno de Lula, a defesa de artistas que, assim como fez Gil, levariam à pasta um novo simbolismo. São eles os cantores Chico César e Daniela Mercury.

E há, dentro da ala cultural do partido, a predileção por gestores que conhecem a máquina pública da cultura, como Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, e Manoel Rangel, ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine). Outra opção seria a deputada Jandira Feghali, do PCdoB, congressista que, há anos, encampa as pautas da produção cultural independente.

Não custa lembrar que, em 2002, o nome de Gilberto Gil, escolha feita 15 dias antes da posse, não tinha jamais aparecido na bolsa de apostas. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Para começar, desatar os nós”

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