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Os olhos do algoritmo

Fábio Lima, distribuidor de conteúdo audiovisual online, diz que o excesso de oferta gera o ‘paradoxo da escolha’

Tendências. Lima, criador da primeira rede de cinema digital do Brasil, distribuiu mais de 5 mil filmes para plataformas - Imagem: Arquivo Pessoal e iStockphoto
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Os filmes chegavam aos cinema em rolos de 35 milímetros quando Fábio Lima começou a operar a primeira rede de cinemas digital no Brasil, em 2003. A Rain era voltada ao circuito de arte e chegou a incluir 200 salas.

Uma década depois, Lima, por meio de outra empresa, a Sofá Digital, viraria agregador da Apple no Brasil. Isso significa, trocando em miúdos, disponibilizar digitalmente o conteúdo da empresa. Hoje, a Sofá Digital atende também, entre outras, o Google Play e a Netflix.

O fato de, nos últimos dez anos, ter distribuído mais de 5 mil filmes para os serviços sob demanda levou Lima a entender que cara tem o consumo ­audiovisual no mundo online.

Embora sua expertise esteja localizada nos filmes e séries, o contato com o comportamento do consumidor, monitorado o tempo todo pelo algoritmo, o faz ter alguns insights sobre esse ambiente digital no qual os bolsonaristas navegam tão à vontade.

“As pessoas buscam, no consumo digital, o que chamo de viés de confirmação”

CartaCapital: Todos sabemos que o audiovisual passa por uma enorme mudança, puxada pelo streaming. Como você define o coração dessa mudança?

Fábio Lima: A revolução se dá, primeiro, na comunicação, porque ela passou a ser, em boa medida, audiovisual. E o ­YouTube é responsável por isso: ele mudou a lógica da informação que era transmitida, ou “empurrada”, de um para muitos e criou a possibilidade de que todos sejam emissores de conteúdo audiovisual. O ­YouTube criou também um tipo de narrativa que se espalhou e que a gente vê hoje na campanha eleitoral, inclusive. O filho do Bolsonaro é um youtuber que conseguiu eleger o pai presidente, né? A comunicação bolsonarista tem características simples do ponto de vista de estrutura narrativa, que é ter um vilão, um conflito e um herói. Nós construímos o hábito de ver televisão todos os dias e, na migração para o ­YouTube, esse hábito se repetiu. Para contar uma história diária, você depende de seguidores, e os algoritmos te mostram o que funciona: a simplificação e o reforço de determinado viés. Então, todos os dias, cada fato novo precisa reforçar a narrativa, com o mesmo conflito, o mesmo vilão e o mesmo herói. É uma ideia simplista usada pela própria indústria do cinema e da televisão. Que o diga o fenômeno Marvel.

CC: Durante algum tempo, acreditou-se que, ao democratizar o acesso, o digital abriria mais espaço para o conteúdo “não Marvel”. Mas, apesar de haver muita coisa acessível, a concentração sobre uns poucos filmes parece ainda maior. Como tem se comportado o consumidor nos serviços on demand?

FL:Ele tem um excesso de opções e tem mais dificuldade para escolher. O “paradoxo da escolha” é o elefante branco na sala da indústria do audiovisual. As pessoas querem grande oferta de conteúdo, mas não querem gastar tempo e energia escolhendo o que ver. O paradoxo da escolha tem impacto direto no que é consumido. Quando a oferta é excessiva, as pessoas tendem ou a abandonar a plataforma ou a assistir ao que estão acostumadas. Os cancelamentos de assinatura têm acontecido em uma velocidade enorme. Além disso, as pessoas perdem, muito rapidamente, o hábito de voltar a determinada plataforma – algo que era diferente na televisão aberta. Tudo o que está disponível tem alguma audiência, mas a concentração se dá em pouquíssimos produtos – os mais publicizados – e nas primeiras semanas. É um consumo perecível. Muita gente, como eu, vislumbrava um consumo mais longo no vídeo sob demanda, mas não é o que acontece. Isso coloca um problema econômico para o mercado: se as pessoas não encontram ou não acessam conteúdo, não adianta ter um grande volume de oferta. Você continuará tendo dificuldade para monetizá-lo.

CC: Que impactos a presença das Big Techs tem tido no consumo e na distribuição de filmes e séries?

FL: Essas empresas têm o poder da distribuição massiva. A Apple e o Google têm um monopólio operacional – você ou está em um ambiente IOS ou Android. A terceira delas, a Amazon, aproximou o audiovisual do e-commerce. Essas três empresas não concorrem entre si: elas concorrem pela atenção das pessoas no ambiente em que atuam. E elas também não concorrem com Netflix, Disney ou ­Warner: elas querem as empresas de entretenimento dentro desse ambiente também. Para as empresas de tecnologia, o audiovisual é um agregado para a retenção da audiência em um ecossistema que inclui game, música, apps e e-commerce. A Apple quer vender hardware, o Google quer dados para poder te empurrar publicidade e a Amazon usa o conteúdo para fazer o consumidor voltar ao ambiente do e-commerce. Como as pessoas precisam de um pouquinho de história todos os dias, o audiovisual é importante para o negócio.

CC: Você sempre volta a este ponto: a história. O que os dados da Sofá Digital mostram sobre as histórias que as pessoas buscam?

FL: Como disse antes, a humanidade, historicamente, recebeu histórias “empurradas”. Quando o hábito muda para o conteúdo sob demanda, isso não existe mais. As pessoas podem escolher. Mas elas acabam indo buscar o que sempre buscaram, e mais: passaram a buscar o que eu chamo de viés de confirmação. Quando o conteúdo era linear, a pessoa acabava vendo coisas que não eram condizentes com o seu pensamento. No modelo sob demanda, quem é progressista procura conteú­do progressista e quem é conservador, idem. As audiências, antes verticais, ficaram horizontais. As pessoas vão para um cluster e lá ficam. As bolhas sabem até que filmes não querem ver. É comum muita gente atacar o filme porque ele carrega uma mensagem contrária à sua crença. Ficou conhecido o caso dos bolsonaristas dando nota negativa para Marighella, sem terem visto o filme.

CC: Para onde vamos?

FL: A mesma coisa que leva a esse caos é o que permite o avanço de podermos compartilhar mais conhecimento. Estamos permitindo que mais gente descubra coisas que não descobriria antes. Também acredito que haverá um processo natural de amadurecimento da sociedade em relação a esse consumo direcionado pela ditadura do algoritmo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Os olhos do algoritmo”

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