Cultura

O tempo em cena

Após dois anos de reclusão forçada por conta da pandemia, atores e atrizes na faixa dos 80 anos retornam aos palcos e, mesmo com limitações, encaram papéis de destaque

Reencontros. Walderez de Barros, 81, lotou o Sesc Pompeia, em São Paulo, com a montagem dupla de As Três Irmãs e A Semente da Romã. Léa Garcia, 89, e Emiliano Queiroz, 86, estão juntos em A Vida Não É Justa, no Teatro Laura Alvim, no Rio de Janeiro - Imagem: Ale Catan e Redes sociais
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Aos 89 anos, Léa Garcia sobe ao palco para viver três personagens em A Vida Não É Justa. Walderez de Barros, com 81, acaba de encerrar a temporada de duas peças concomitantes, As Três Irmãs e A Semente da Romã. Ana Lúcia Torre está radiante por interpretar, aos 77, aquela que considera a grande personagem feminina do teatro moderno: Mary Tyrone, de Longa Jornada Noite Adentro. Ex-parceiro dela em Suburbano Coração, Otávio Augusto, da mesma idade, comemora seis décadas de carreira e 10 mil espectadores em A Tropa.

Dois anos e meio após um hiato sem precedentes nas peças de teatro do Brasil e do mundo, ocasionado pela pandemia, é um alento constatar que atores e atrizes na faixa dos 80 (ou próximos a essa idade) não só estão retornando aos palcos como também encarando papéis de destaque.

“Eu achava muito difícil voltar depois disso tudo, ainda mais numa grande produção”, diz Walderez de Barros, que completou os 80 anos reclusa. “Todos envelhecemos durante a pandemia, mas, para quem está na minha faixa de idade, dois anos é muita coisa.”

Antes de ver “o mundo fechar”, ­Walderez ensaiava, com a Companhia da Memória, a montagem dupla de As Três Irmãs e A Semente da Romã. Veio o ­lockdown e, com ele, todas as incertezas – sobre a peça e a vida. Mas o pior baque estava por vir: pouco mais de um ano depois, Sergio Mamberti, seu colega de cena, morreu de falência múltipla dos órgãos. “Foi um choque. Eu queria desistir, achei que seria muito doloroso continuar no projeto. Mas aí o Antonio Petrin entrou, e eles acabaram me convencendo a fazer como uma homenagem ao meu grande amigo.”

“De início, estranhei. Eu, com 89 anos, vou fazer essa personagem?”, conta Léa Garcia

A temporada paulistana durou dois meses e foi um sucesso, apesar (ou talvez por causa) do formato ousado: as peças acontecem simultaneamente, com o palco dividido ao meio e duas plateias, uma delas com fone de ouvido. “Se a idade já não me permite fazer coisas de grande esforço físico, tenho ao menos de buscar coisas diferentes”, ri Walderez. “Os dois neurônios que restam deram conta do recado.”

Por ser o teatro um ofício fisicamente desafiador, seguir em cena, a partir dos 70, exige, quase sempre, a coragem de lidar com algumas limitações. Ao ser convidada para fazer A Vida Não É Justa, Léa Garcia, de primeira, disse não. A atriz teve Chikungunya quatro anos atrás, e a doença deixou sequela, comprometendo sua mobilidade. Mas, depois de algumas conversas, ela cedeu aos pedidos do produtor Eduardo Barata e de Tonico Pereira, que dirige o espetáculo e adaptou as cenas com a atriz para deixá-la confortável, ao lado de Emiliano Queiroz, de 86 anos.

Com 50 apresentações no Rio, temporada garantida em Niterói e convites para São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza, Barata vê com satisfação o fato de os dois idosos serem um dos motivos do sucesso do espetáculo. “São dois ícones do teatro brasileiro, e é uma honra contar com eles”, diz. “Quando comentava que tinha convidado dona Léa e seu Emiliano, tinha gente que dizia: ‘Mas eles não estão com dificuldade de locomoção’? E eu respondia: ‘E daí? Teatro é vida, e a vida é imperfeita’. O palco deve ser um espaço de reflexão sobre o corpo do artista.”

Barata fala com conhecimento de causa. Em janeiro, sua mulher, a atriz Françoise Forton, morreu de câncer, aos 64 anos. No período de UTI, ele viu o quanto a participação na leitura virtual de uma peça “deu oxigênio para ela enfrentar por um tempo a dor daquele momento”. Dois meses depois da perda, o produtor estreava A Vida Não É Justa: “O melhor presente que você pode dar a um artista é trabalho. Este espetáculo me salvou também”.

Na peça, Léa Garcia interpreta três mulheres completamente diferentes, inspiradas no livro de mesmo nome, em que a juíza Andrea Pachá conta histórias de uma vara de família. Uma delas usa o codinome Molhadinha25 para trocar mensagens virtuais eróticas. “De início, estranhei. Falei: ‘Mas eu, com 89 anos, vou fazer essa personagem?’ Depois achei bom para mim, na condição de mulher negra, sair do universo de personagens estereo­tipados”, observa Léa. “Ultimamente, só me chamavam para fazer mãe de santo ou papéis desse tipo. Agora foi para fazer, simplesmente, uma mulher.”

Vivências. Ana Lúcia Torre, 77, interpreta uma mãe viciada em morfina em Longa Jornada Noite Adentro, em cartaz no Tucarena, em São Paulo. A Tropa, com Otávio Augusto, 77, excursionou por oito cidades e agora está em cartaz no Petra Gold, no Rio – Imagem: Elisa Mendes e Priscila Prade

A trajetória de Léa inclui o espetáculo Orfeu da Conceição (1956), e sua premiada adaptação para o cinema (Orfeu Negro, 1959), além da passagem pelo Teatro Experimental do Negro, com Abdias do Nascimento, pai de dois de seus três filhos. Embora veja pequenos avanços no que diz respeito à “visão de colonizador” na produção cultural, ela enxerga um longo caminho a ser percorrido. “Ainda acontece de roteiristas e diretores brancos quererem botar a gente de chinelo roto em cena”, diz. “Mas estamos pavimentando a estrada para que outras atrizes negras mais velhas sejam respeitadas.”

Léa contracena com Emiliano Queiroz em duas das histórias da peça. Além de fazer o marido de Molhadinha25, ele encarna um idoso casado há décadas, numa relação repleta de silêncios e momentos de solidão a dois. “Me emociono todos os dias. Olho para Léa e, muitas vezes, choro em cena, porque sei que essa é a realidade de muitos idosos”, conta ele.

Com cerca de 300 trabalhos no currículo, entre teatro, cinema e tevê, ­Emiliano vê de forma pragmática a discussão sobre etarismo e a escassez de papéis para atores mais velhos. “É difícil encontrar bons personagens na minha idade. Já fiz muito vovô”, diz. “Talvez os jovens precisem fazer mais o exercício de pensar como querem ser tratados na velhice. A verdade é que ninguém costuma parar para se imaginar com 80 anos.”

Ainda que o trabalho possa, de fato, ficar mais complicado com o passar dos anos, Ana Lúcia Torre pondera que “a qualquer época tentam puxar o freio de mão dos atores”. Ela reflete: “Se fosse para se assustar com preconceito, atores não existiriam desde a Grécia Antiga”. A atriz lembra que, na sua juventude, ainda “havia quase uma campanha velada dizendo que quem era ator não prestava”. Hoje, tenta-se colar na classe teatral a imagem de adeptos da mamata com dinheiro público.

“Agora valorizo mais do que nunca a oportunidade de estar no palco”, diz Otávio Augusto

A melhor resposta vem em forma de trabalho. Presença constante na tevê, ela fez, durante a pandemia, a novela Quanto Mais Vida, Melhor, e estará em Travessia, de Glória Perez, no ar a partir de outubro – ambas na Globo. No teatro, como protagonista do texto mais celebrado de ­Eugene O’Neill, interpreta uma mãe viciada em morfina. “É uma personagem de forte desgaste físico e emocional, porque muda de humor em coisa de segundos, tem crises absurdas”, descreve a atriz.

Apesar de ficar exausta, ela faz questão de, após o espetáculo, conversar com o público no saguão do teatro Tucarena, em São Paulo. Costuma ser procurada por gente sensibilizada por ter histórico de vício na família. “Em geral, são ­pessoas de idade, que, aliás, formam um público importante de teatro. Tenho a maior paciência nessas conversas, aprendo muito com elas”, conta Ana Lúcia.

O espelhamento com a realidade é experimentado também por Otávio Augusto. Ele diz que, provavelmente, A Tropa segue em cartaz, após passar por oito cidades, por uma involuntária coincidência. O texto de Gustavo Pinheiro, premiado em um concurso do Centro Cultural Banco do Brasil em 2015, mostra o acerto de contas de um ex-militar viúvo e doente com seus quatro filhos, em um quarto de hospital. Apesar de ter sido escrito antes de o governo Bolsonaro tornar-se realidade, traz alguma discussão política.

“Digamos que deu uma atualizada por conta do atual contexto do País. Vem tendo uma repercussão muito grande, inclusive com aplausos em cena aberta”, diz Augusto, sem disfarçar o orgulho. De volta ao Rio, a peça passou de uma para duas apresentações semanais, graças à alta procura.

“Tenho paixão pelo teatro, faço questão de não parar. A peça tinha sido interrompida pela pandemia, e agora estou me sentindo mais artista. Agora valorizo mais do que nunca a oportunidade­ de estar no palco”, diz Otávio, resumindo, de alguma forma, o espírito dos colegas que também voltaram à cena. •


ESTRELA REVISITADA

A Ocupação Tônia Carrero, no Itaú Cultural, mostra a atriz em cena, mas também fora dela
Por Ana Paula Sousa

O grande parceiro. Tônia com Paulo Autran, na peça Esses Maridos, montada em 1957 por Adolfo Celi – Imagem: Acervo Tônia Carrero/Adolfo Celi

Em comemoração ao centenário de nascimento de uma das maiores estrelas brasileiras, o Itaú Cultural, em São Paulo, exibe, desde o sábado 13, a Ocupação Tônia Carrero. A mostra reúne 230 peças, que incluem fotos, trechos de filmes, cartazes de peças e cadernos de anotações.

A curadoria resgatou, por exemplo, bilhetinhos endereçados a Tônia escritos pelo cronista Rubem Braga e pelo diretor Adolfo Celi, seu segundo marido. Outras figuras marcantes da cultura brasileira que atravessaram sua ­trajetória, como Carlos ­Drummond de Andrade, Bibi Ferreira e Tom Jobim, também surgem no espaço.

Isso sem se falar, é claro, em Paulo Autran, histórico parceiro de palco – ambos dividiram 25 montagens – e amigo de uma vida inteira.

Tônia estreou no cinema com Querida Suzana (1947) e participou de 19 filmes. No teatro, a primeira peça foi Navalha na Carne, em 1967. Na tevê, participou de 15 novelas.

Morta em 2018, aos 95 anos, a atriz ressurge, na mostra, tanto por meio de cenas vistas por muitos quanto por meio de detalhes de sua vida presenciados, até aqui, por quase ninguém.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O tempo em cena “

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