Cultura

O Rio, com paixão

O ex-prefeito Saturnino Braga convida, em livro, a um passeio por encontros que resistem ao desastre produzido – e não só pelos políticos

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Nos últimos tempos, porém, o Rio tem feito o possível e o impossível para desmerecer o amor devotado à Cidade (que foi) Maravilhosa. E não adianta culpar só os políticos, vários dos quais, aliás, estão atrás das grades. A elite insensível e gananciosa do Leblon e adjacências uniu-se à mediocridade violenta das seitas evangélicas para contemplar o resto do País com a vulgaridade teocrática e cleptomaníaca do bolsonarismo. A sociedade também tem sua culpa no descalabro.

Uma aragem de encantamento sopra de Joias do Rio, o novo livro de Roberto Saturnino Braga. Seria fácil, ele sabe, percorrer com os olhos do saudosismo este Rio ainda digno de carinho e ainda envolto em poesia. Mas o que Saturnino pretende é usar a memória como ferramenta capaz de iluminar o presente com uma esperança quase impossível. Mais paixão do que compaixão.

“O Rio é português na alma, no sentimento, é africano no leito, na ginga, no samba, no melífluo do sexo brasileiro, é índio também, um pouco francês, agora muito americanizado.”

Essa vitalidade múltipla cobrou de Saturnino um desafio dolorido: o de reduzir a 13 “as feições mais ricas do Rio, as belezas especiais, as joias do meu coração”. Conformou-se com as treze, “quando podiam ser mil e trezentas”. No final, quando foi contar, eram catorze.

Melhor cicerone não poderia haver. Roberto Saturnino Braga, 87 anos, por cinco décadas dedicou sua energia política e sua inteligência criativa – como escreveu esta CartaCapital – à democracia e ao seu Rio, como prefeito, vereador, deputado federal e senador da República. Deu adeus aos cargos e aos mandatos sem se deixar macular por um único arranhão ético.

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Em 2017, expôs essa sua trajetória em Itinerância (Editora Contraponto), sem se deixar seduzir pelo autoelogio. Ainda que produto raro, honestidade, diz ele, não é virtude, é obrigação. O livro desobstruiu a veia literária que ele volta a trafegar neste Joias do Rio.

As joias de Saturnino não se acanham de ser, quase todas, aquelas que a vocação mítica do Rio colecionou – e o circuito turístico consagrou. Começa por Copacabana, “a joia primeira”, inclui a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Jardim Botânico, não se esquece da Praça Mauá e do Parque do Flamengo, areja-se na Floresta da Tijuca e na Quinta da Boa Vista.

Mas acrescentou surpresas de quem só poderia conhecê-las gastando sola de sapato, ao rés do chão, em campanhas eleitorais ásperas e no ofício do que ele chama de síndico. Quem conhece o Parque de Madureira levanta a mão. E a Nave do Conhecimento? O Jardim Sensorial? O Espaço da Terceira Idade? A Arena do Samba? Junte tudo e mais um jardim botânico e eis o presente que Madureira, berço tanto da Portela quanto do Império Serrano, ganhou menos de dez anos atrás.

Engenheiro bissexto, Saturnino primeiro entrou em contato com o serviço público a bordo do recém-criado BNDE, depois BNDES, quando o banco ainda pretendia servir de fomento à nascente indústria nacional. A expansão da rede ferroviária foi um projeto que o banco apoiou e o jovem analista Saturnino, viajando pelo País afora, acabou se encantando pelo assunto.

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Muito tempo depois, descobriu o Museu do Trem, inaugurado em 1984 e administrado pela Rede Ferroviária Federal, num galpão restaurado no Engenho de Dentro – outra joia desconhecida do Rio. A joia desta joia é a Baroneza, de origem inglesa, a primeira locomotiva a trafegar no Brasil, em 1854, encomenda do endiabrado Barão de Mauá.

O homem de esquerda, sensível às agruras de seus semelhantes, destaca, em dois capítulos, a paisagem onde o Rio é mais caracteristicamente Rio – à qual, por ironia, parte do Rio só quer ignorar, dar as costas.

Em “Os morros primordiais”, Saturnino revisita aqueles três que conseguiram sobreviver aos sucessivos “bota-abaixo” a que o centro histórico foi submetido (Morro de São Bento, de Santo Antônio, da Conceição) e relembra um quarto, o Morro do Castelo, demolido “por um prefeito inculto”, responsável por “uma destruição irreparável”.

O capítulo “Os morros fundamentais” dominam o presente, se bem que seja fácil imaginar que já tenham deslumbrado Villegagnon e seus calvinistas ao chegarem à Baía de Guanabara, em 1550, a fim de implantar a França Antártica. São o Pão de Açúcar e o Corcovado. “Atesto que esses morros”– derrete-se o engenheiro enamorado pela sua terra – “surgiram não de um estrondo tectônico, mas de um movimento brando e sonoroso das entranhas do planeta. Daí a unicidade, a incomparabilidade, a maravilhosidade.”

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