Cultura

O que pretende Bolsonaro ao fechar a Ancine e pautar o cinema nacional?

Misto de ignorância e preconceito contra a produção nacional, Bolsonaro ameaça tomar uma atitude que tinha outro nome no passado

Cena de Bruna Surfistinha, exemplo de filme que Bolsonaro quer vetar
Apoie Siga-nos no

O filme Bruna Surfistinha, produção de 2012, gerou 500 empregos diretos e indiretos, levou 2,2 milhões de espectadores aos cinemas, rendeu 20 milhões de reais em bilheteria e 10 milhões em impostos para o Estado brasileiro (2 milhões de reais a mais do que o Estado investiu no filme através da Agência Nacional de Cinema, a Ancine, e pela Lei do Audiovisual). Apesar da robustez de seu desempenho, Bruna Surfistinha tornou-se alvo da tacanhice ideológico-moral do governo Jair Bolsonaro na última semana, quando o presidente resolveu fazer demagogia para seus eleitores extremistas e citou pejorativamente o filme dirigido por Marcus Baldini.

Usando Bruna Surfistinha como pretexto de imoralidade, o sequioso mandatário chegou à seguinte conclusão: “Se não puder ter um filtro, vamos fechar a Ancine ou privatizá-la”. A ameaça de Bolsonaro, o chamado “filtro”, foi imediatamente traduzida pela classe artística: trata-se de censura. Na segunda-feira 22, mais de 800 artistas e intelectuais assinaram uma carta contra a ameaça de se instituirem “filtros” na cultura, entre elas o cantor Caetano Veloso e os atores Antonio Grassi e Débora Falabella. “Repudiamos veementemente as declarações do presidente da República, quando ameaça promover censura a obras audiovisuais fomentadas pela Ancine”, diz a nota. Também os secretários de Cultura do Nordeste, reunidos, divulgaram nota repudiando a situação. “Nenhum presidente ousou fazer uma intervenção na arte como Bolsonaro está fazendo”, disse Fábio Novo, secretário de Cultura do Piauí.

O ataque de Bolsonaro embute o autoritarismo típico de sua composição política, análogo ao de ditadores como os da Coreia do Norte ou da Arábia Saudita. Ou, para ser mais preciso, ao período hitlerista na Alemanha, entre 1933 e 1945, quando Paul Joseph Goebbels e seu Ministério da Propaganda nazista montaram um cinema de encomenda que tinha como aríete a diretora Leni Riefenstahl, entre outros. Goebbels almejava o controle absoluto da arte, informação e imprensa como arma de subjugação social.

Da mesma forma que Goebbels, Bolsonaro defendeu que a Ancine se dedique a patrocinar filmes sobre “heróis brasileiros”, como vociferou. “Nós temos tantos heróis e as pessoas não falam sobre eles. Devemos preservar nossa memória, mostrar o passado das pessoas que deram suas vidas no passado, batalharam para o Brasil ser independente ou democrático com um futuro que pertença a todos.”

“Se não puder ter um filtro, vamos fechar a Ancine ou privatizá-la”, vocifera o presidente

Mesmo que houvesse uma procuração nacional para legitimar a sua noção fora da lei do que seja um herói brasileiro (saudou publicamente um notório torturador da ditadura civil-militar, o coronel Brilhante Ustra), sabe-se que sua atividade recente em prestar tributos consiste numa homenagem póstuma a um funkeiro suicida que tentou assassinar a namorada (Tales Volpi, o MC Reaça) e, em uma frase sintomática dita somente após ser inquirido, sobre um dos maiores músicos da história do País, João Gilberto, morto aos 88 anos no dia 6 de julho. Sobre João Gilberto, Bolsonaro disse, laconicamente: “(Era) uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?”

De prático, além da exibição pública de parvoíce, restou a decisão de Bolsonaro de transferir o Conselho Superior de Cinema (CSC) do Ministério da Cidadania para a Casa Civil, além de reduzir a sua composição pela metade. É um esforço de controle, mas o tiro pode sair pela culatra: o movimento dos artistas diz que vai à Justiça, se necessário, para garantir uma “cultura livre” de interferências estatais na área audiovisual. O clã dos Barreto (Luiz Carlos Barreto e seu filho, Bruno) manifestou-se favorável à transferência, ainda não efetivada. Mas são vozes solitárias. “Sou a favor de que a Ancine fique no atual Ministério da Cidadania. Porque o da Economia, dirigido por Paulo Guedes, é uma visão de país exportador de matéria-prima, que não compreende a economia do século XXI e da inovação. Eles não sabem o que é e como funciona uma economia baseada em direitos autorais”, afirmou Alfredo Manevy, ex-diretor da SPCine, agência de fomento cinematográfico de São Paulo.

A diatribe de Bolsonaro sobre Bruna Surfistinha também trai um subtexto de intolerância que se funda orgulhosamente no desconhecimento, na soberba da ignorância. Bolsonaro é tão primitivo que acha que um filme que trata de prostituição é necessariamente pornográfico. Equivale a dizer que O Poderoso Chefão é criminoso, que O Silêncio dos Inocentes é psicopata ou que A Cor Púrpura é escravagista. Como palpiteiro que combate a informação fundada em estatísticas, estudos sérios e dados comparativos, o presidente não sabe que cerca de 80% dos filmes financiados com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual são do gênero ficção.

Filmes propagandísticos são um perigo na mão de governantes de viés autoritário, além de serem candidatos potenciais a produções obscuras, como foi o caso do filme chapa-branca sobre a Operação Lava Jato, Polícia Federal: A Lei É para Todos, patrocinado secretamente por uma empresa amiga do regime, o Grupo Jari (que acaba de pedir recuperação judicial das suas empresas). Tornou-se uma peça de infâmia política após a sucessão de vazamentos divulgados pelo site The Intercept, que o tornaram uma piada precoce – hoje, até as pedras dos calçamentos sabem que a operação tinha intuito político e manipulava nos bastidores para criminalizar um único partido e beneficiar outros, além de poupar criminosos com identificação de propósitos.

A plateia preferida de Bolsonaro

“Não sei a que tipo de filtro ele está se referindo. Se é ideológico, é o retorno da censura ao cinema brasileiro. Quanto à ameaça de fechar a Ancine, não estou surpreso. Trump sabotou todas as agências americanas, começando com aquelas destinadas à ciência, questões ambientais e à luta contra o aquecimento global. É como Forrest Gump diz: ‘Estupidez é o que o estúpido faz’”, afirmou ao Jornal Nacional o cineasta José Padilha, o neoarrependido diretor de Tropa de Elite, Robocop e Narcos. “Não consigo dar crédito a isso em um país democrático em 2019”, disse Leonardo Edde, do Sindicato da Indústria Audiovisual (Sicav).

“O cinema não pode se reduzir a uma ou outra visão de mundo, pois isso nos limita como gente, como povo”, diz o diretor do filme Bruna Surfistinha, Marcus Baldini. “A diversidade é uma das belezas da humanidade e a cultura, sua expressão.” Os “filtros” preconizados de Bolsonaro foram rejeitados até por gente do seu espectro político, como o deputado Alexandre Frota, e considerados temerários pelos ex-ministros da Cultura de Temer, Sérgio Sá Leitão e Marcelo Calero.

“Se o filtro é ideológico, é o retorno da censura”, disse o neoarrependido diretor José Padilha

O cinema nacional tem um impacto de 0,46% no PIB, movimentando 24,5 bilhões de reais por ano. Supera a indústria de papel e celulose (22 bilhões), farmacêutica (18 bilhões), de eletrônicos (16 bilhões) e têxtil (12 bilhões). É infinitamente maior do que a exportação de abacates, saudada por Bolsonaro, que movimentou 59 milhões de reais em 2018.

A produção audiovisual do País hoje alimenta 17,7% do conteúdo exibido nos canais por assinatura, embora tenha uma cota definida por lei de apenas 2,8% (na Europa, é de 50%). E temos 8.816 produtoras de cinema registradas e regulares trabalhando, com milhares de empregos sendo gerados continuamente.

“O cinema não pode se reduzir a uma ou outra visão de mundo”, protesta o diretor Baldini

Em 2018, o cinema brasileiro vendeu 23 milhões de ingressos. A saúde dessa indústria não depende de repasses governamentais, ela gera sua própria receita por meio da taxação das operadoras de telefonia, do cinema estrangeiro e da tevê paga. É justamente essa capacidade de autogestão que incomoda o governo. Ao jornal Folha de S.Paulo, uma fonte do governo diz que acha “atípico” que uma agência tenha um fundo de fomento autônomo. O governo quer controlá-lo e adequá-lo aos seus interesses. “A ideia de controlar ou filtrar a produção cultural é típica de regimes autoritários. Mas isso pode ser só uma cortina de fumaça para eliminar a agência com a possível conivência dos liberais do governo, que não querem subsídio público para a cultura”, analisa Alfredo Manevy.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo