Cultura

“O passado é uma roupa que não nos serve mais”

Em uma Brasília que também envelhece, “O Último Drive In” carrega a história das relações deterioradas entre pais e filhos

Existe a vida que se encerra e a vida que se recorda. O resto é imperceptível. É a ausência notada só no reencontro
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-Tá tudo bem lá?

-Tá.

Não estava. Nem sempre estava. Até estava, mas não tudo. Não dá pra ter tudo. Mas alguma coisa estava. Estava andando. Outras, não. Mas o quê? Para explicar, era preciso começar a conversa, mas aquilo não era uma conversa. Aquilo era protocolo. Até havia um interesse de fundo. Um interesse sincero. Uma preocupação. Mas não tínhamos como explicar sem começar do começo. Sem voltar ao começo. Então só restava responder:

-Tá. Tá tudo bem, sim.

-Que bom.

-E por aí?

-Aqui tá. Tá indo.

Depois vinha o silêncio. Não havia o que dizer.

Voltar ao ponto de origem era descobrir que não havia o que contar. Mesmo quando havia.

Estranha forma de crescer, esta: basta aprender a falar para esbarrar nas conversas em solavancos. Um ensaio para ter o que dizer. Para não dizer que não havia muito a dizer desde que…desde quando?

Desde quando começamos a nos distanciar. Quando tínhamos o tempo a favor e não estávamos nos planos. Quando não tínhamos começado a acabar. A dormir profundamente, como no poema de Manoel Bandeira. “Onde estavam os que há pouco, dançavam, cantavam e riam?”.

Existe a vida que se encerra e a vida que se recorda. O resto é imperceptível. É a ausência notada só no reencontro.

 

 

-Tá tudo certo lá?

-Tá.

E daí? Daí que nada.

No reencontro entre pai e filho no filme O Último Cine Drive In, de Iberê Carvalho, a tentativa de resgatar este algo que se quebrou é revelada numa mesa de jantar.

-Como está o serviço?

-(silêncio)

-É uma firma grande, não?

-(silêncio)

-Você continua no mesmo posto?

-Qual posto?

Confrontado pelo filho, de nome Marlombrando, o pai interpretado por Othon Bastos se apequena, acovardado e frágil – como era o filho nas primeiras cenas da vida, gravadas por uma câmera que não se usa mais. Do filho, depois de velho, ele sabia quase nada, e não tinha rodeio que o livrasse dessa sentença. Dele o filho não quer saber. Não mais. Não agora, após anos de distância inexplicada. O pai é “cara”. É o “velho”. É o “Almeida”. “Pai” não é. A morte iminente da mãe é o único ponto que os aproxima.

No filme, a história das relações deterioradas, sustentadas em esparadrapos e diálogos protocolares, é contada num exercício de metalinguagem. O velho Drive In de Brasília já teve seu auge. Como a cidade. Já teve seu tempo. Como a cidade. Hoje não compete com as salas fechadas de projeção 3D. Tornou-se um estorvo numa região carente de espaços e espetada por prédios envidraçados de alto padrão – justo na cidade que prometia não envelhecer, que prometia a liberdade das curvas.

A modernidade envelheceu, parece dizer o diretor, e é estranho pensar que, aos 55 anos, a cidade também envelhece em atrito com o “novo” novo. Desde crianças, aprendemos a olhar a capital do país como a cidade projetada em direção à modernidade, com suas curvas, suas linhas, seus vãos e seus espaços distribuídos em asas. Assim também imaginamos os adultos quando crianças: confiamos que serão e estarão para sempre.

Mas envelhecer é também um descaso. É deixar que as bases sejam corroídas. É apostar na velha fórmula. É não ver o desbotar. É deixar apodrecer.

A convivência entre o velho e o novo na cidade e no filme é a alegoria de uma linguagem truncada e sobreposta. O novo não se reconhece no velho, o velho não se reconhece velho, e não há romantismo nisso. O cinema ali não é o paraíso. Não é a memória guardada de uma valentia – a valentia da luta contra o tempo. É a memória de uma teimosia. De um vigor destituído. Desautorizado. Não há centímetro enquadrado naquele espaço que não esteja borrado, esquecido, carcomido. Negligenciado.

“Ninguém quer saber desse fim de mundo”, diz o dono do cinema, quando percebe, tardiamente, que o tempo e os novos atores chegaram como um trator.

O fim do mundo é vizinho de uma nova fronteira: a poucos metros dali está o Estádio Mané Garrincha, moderno, espaçoso, centro das atenções na Copa do Mundo encerrada ontem. Só não tem público. Nem espetáculo. Não tem sequer memória. Como tudo o que um dia foi jovem, está fadado a envelhecer. A descobrir pela pedra o que dizia a (agora velha) música: o passado é uma roupa que não nos serve mais. Não serve a mais ninguém.

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