Cultura

O Oscar e a religião

No espaço, no futuro ou em Wall Street, uma temática parece unir os concorrentes da cerimônia: o exercício da fé em plena era digital

Cena do filme "Gravidade": quando o risco calculado não protege do acaso
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No espaço, em Wall Street, em um vilarejo da Irlanda, da Bélgica ou no futuro em que as máquinas falam e pensam por nós, um tema parece unir alguns dos principais indicados ao Oscar deste ano. Se no ano passado a temática comum era a reconstrução do mito na História – da escravidão em Lincoln e Django, da revolução iraniana em Argo ou de um naufrágio em As Aventuras de Pi – desta vez a Academia contemplou o dilema de homens lançados à própria sorte em um mundo de descrenças. Goste-se ou não, a presença principal da premiação é uma pergunta: por que o homem abandonou a religiosidade e se tornou uma divindade dele mesmo?

As respostas, a depender do olhar, podem resultar na condenação de um hedonismo declarado ou na exaltação da independência humana de velhos dogmas. O cinema, claro, não tem a obrigação de fornecer resposta alguma, mas serve como um termômetro, levado à tela, de uma inquietação real. Uma inquietação que, no auge da tecnologia, tem alavancado uma multidão de seguidores e votos a líderes político-religiosos com os argumentos mais rasteiros.

Por quê?

Ao menos neste ano, as produções em evidência parecem sensíveis a esta contradição. Recordista de indicações, Gravidade, de Alfonso Cuarón, surge como o retrato de um exercício humano para religar os vínculos com a fé. No filme, a personagem de Sandra Bullock é uma especialista responsável por consertar um equipamento no espaço cuja função é manter os homens em contato com a Terra. O tempo todo ela é chamada de “doutora”, como se fosse uma médica escalada para ir ao espaço para uma cirurgia. Do alto (ou de baixo), todos estão seguros sobre o sucesso da missão: o acúmulo de experiências e avanços científicos fazem os personagens transitar pelo espaço como se fosse seu quintal. Tudo ali pertence ao homem. É como se não houvesse lugar mais seguro no universo: de longe, é possível monitorar a capacidade de oxigênio e os batimentos cardíacos dentro das roupas espaciais. Tudo é calculado, previsto e treinado. Menos o acaso. O evento não-previsível transforma a aventura espacial em uma tragédia humana.

Há, de certa forma, um componente moralista no que se segue. É como se todos os personagens fossem punidos por acreditar que poderiam brincar de Deus em um lugar que não foi criado para eles. Todos, menos um: a “doutora” da missão. Na terra, tudo indica que a personagem interpretada por Sandra Bullock levava a mais trivial das rotinas: nada era capaz de fazê-la superar a perda da filha. Por isso, a certa altura do filme, ela conta que gostava de andar sem destino pelas ruas ao fim do expediente. Ali, como no espaço, o acaso e o imprevisível (uma morte estúpida, conforme ela resume) tiram dela algo mais do que a capacidade de reagir: tira dela a capacidade de acreditar em qualquer sentido para a vida. Em um tempo e espaço em que tudo é calculado com base científica, nada se move sem alguma razão – e o que não faz sentido nem é tateável não serve ao conhecimento – o dilema funciona como uma ironia divina: é só quando abre os braços, respira fundo e corta os laços todos daquele mundo que a personagem se vê sozinha, mas empurrada por uma força invisível. A sequência de cenas em que os cabos de comunicação das aeronaves estão cortados serve como um imperativo moral à “doutora”: religue-os. (Atenção, o parágrafo a seguir é um spoiler de dimensões planetárias). Não por acaso, sua esperança de voltar à Terra com vida só ressurge quando ela ouve uma voz humana em um rádio. E pede, sem saber se é ouvida ou não em algum canto da Terra, como em uma experiência religiosa às avessas: “Eu não sei rezar, mas preciso da sua ajuda: torça por mim”. Somente quando está diante de si; somente quando admite que está sozinha; somente quando se vê incapaz em meio à parafernália humana que a levou até o espaço é inútil; somente quando se apega a uma força superior para vencer um destino inevitável, é que o milagre acontece: ela é guiada pelo inconsciente até a origem da vida, a Terra. A cena final, em que reaprende a nadar e rasteja como um anfíbio em direção à areia em um local preservado que poderia ser as Ilhas Galápagos, onde Darwin deu vida à sua teoria da Evolução das Espécies, é definidora da missão – não da personagem, mas do filme. Antes de aprender a andar como um bípede novamente, ela beija o chão e agradece. Agradece a quem? A tudo o que não coube na ciência. (Fim do Spoiler).

Esse dilema do sujeito desvinculado do mundo e da velha fé norteia outros concorrentes ao prêmio. Em Ela, por exemplo, os homens substituem as relações entre eles e geram novos deuses, criados às suas imagens e semelhanças. Tudo o que precisam parece ser consubstanciado na própria tecnologia disponível. As vozes das consciências, como a voz que falava a Moisés no Antigo Testamento, vêm dos sistemas operacionais. A ciência que promete tudo, no entanto, não entrega quase nada: os homens estão conectados, mas sem propósitos. Estão, de toda forma, abandonados à própria sorte. São crentes fervorosos apenas de que a salvação está próxima: o criador, em algum momento, dará vida e sentido à vida a partir não do Éden, mas do Vale do Silício. A consequência dessa busca da autossuficiência é desastrosa.

Em Philomena, o conflito tem contornos ainda mais claros. Philomena, a personagem de Judi Dench, tem a vida devastada pela igreja para a qual jurou votos e passa 50 anos longe do filho, fruto do pecado expurgado pelas madres superiores. O caminho até o filho perdido a leva de volta ao convento. É quando descobre que a desfortuna de seu destino arrancou dela quase tudo, menos a fé, apesar dos pés de barro – e humanos – das pedras sobre as quais foi construída aquela igreja.

Embora não esteja tão claro, este embate acaba aparecendo, de uma forma ou outra, nos outros concorrentes ao prêmio principal. Em Nebraska, por exemplo, o estado de abandono das cidades que formam a paisagem no filme de Alexander Payne é a imagem de uma solidão inevitável. Os homens, ali, estão jogados à própria sorte. Os vínculos familiares estão frouxos. O sistema econômico está em colapso. Ao velho que já perdeu a razão, interpretado por Bruce Dern, restou se apegar a um absurdo: um prêmio inexistente. É como se o diretor avisasse: perdemos todos os vínculos e todas as crenças, só nos resta o absurdo. Esse absurdo levará à reconexão de laços afetivos, mas até lá o caminho é longo – e árduo. O mesmo vale para Clube de Compra Dallas: abandonado pelos amigos, pelo governo e pelas próprias convicções em um mundo heteronormativo, resta ao personagem de Matthew McConaughey, um machão arrogante que se descobre infectado pelo vírus HIV, arregaçar as mangas e se salvar. Se sentasse e rezasse com a própria vergonha e os próprios preconceitos, seria devastado pelo vírus e por outros tipos de pragas, como a dos lobbies de grupos religiosos e empresas de medicamentos que usam dogmas distintos e de natureza semelhante para travar o avanço científico. No caso de McConaughey, é a descrença que o salva.

Trapaça e O Lobo de Wall Street, por sua vez, centram-se na história de vigaristas. Vigaristas que, sem qualquer temor ou culpa, atropelam quem estiver à sua frente. No primeiro filme, trata-se de trapaceiros amadores, seja na polícia, seja no submundo do crime. Sai a máfia de moral inflexível e aliança com as igrejas locais de O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros e entram em cena os golpistas de voo solo. O antigo sistema de organização, com hierarquia familiar e ética própria sobre delações e sobre a mulher do próximo, é ignorado. Nesse mundo sem Deus-dará, a ansiedade de dar o passo maior que as pernas é o que levará os mais ansiosos à ruína. Vence quem tem uma única linha de ação: a paciência para se dar bem, ainda que só. Na mesma linha, o Lobo surge como a alegoria de um mundo de ética própria: o dinheiro acima de tudo. É em nome do dinheiro que o personagem de Leonardo DiCaprio passará a agir, falar e pregar como um pastor religioso. A ordem para vencer no sistema financeiro é uma só: enriqueçam, não importa quem precise ser atropelado para isso. Os enganados creem ter enriquecido com a valorização das ações, mas jamais resgatam as benesses, como se estas estivessem reservadas à vida após à morte. Nessa, o único que coloca no bolso o dinheiro, materializado em iates e mansões, é o pastor, o mesmo que prega o desapego das regras mundanas aos asseclas e é o único que vive como se não houvesse amanhã.

O dilema do homem como divindade de si surge também em uma disputa paralela do Oscar, a de melhor filme estrangeiro. Em A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino, um escritor tropeça na própria descrença o tempo todo. Estando em Roma, berço da antiguidade clássica, não se emociona com a arte moderna nem pós-moderna. Sendo escritor, não acredita na capacidade transformadora de sua arte, a literatura. Sendo só, não crê no destino redentor das relações afetivas nem das religiões. Pelo contrário, olha com desdém o mundo de imediatismos, espetáculos e celebridades criados ao seu redor, entre elas para receber uma santa que lhe promete uma entrevista e uma consulta espiritual. Aos 65 anos, ele já não acredita em santos nem em celebridades nem em padres nem em si mesmo. Eis a mais ingrata das missões: nesse mundo sem intermediários, como não cair no vazio em busca da grande beleza humana?

Nenhum destes filmes, porém, toca tão claramente na ferida como o belga Alabama Monroe. Na história, um casal perde a filha pequena e toma caminhos distintos para superar a dor. O pai responde à perda com ódio: ódio dos homens, ódio das religiões e ódio de Deus, que permitiu a tragédia. A mãe prefere rezar. E, ao tomar esse caminho, se transforma em vítima da patrulha do marido que, como os filhos do velho esclerosado de Nebraska, passa o filme a martelar a personagem para que ela volte à razão: “rezar não trará a nossa filha de volta”. Sem querer, responde à tragédia com uma outra tragédia: a da intolerância (no caso, uma intolerância antirreligiosa, a que cobra a benesse de ser livre para não crer e passa a vida em pregação sobre a ingenuidade de quem crê). Sobre este conflito, o próprio diretor do longa afirmou em entrevista ao repórter Gabriel Mestieri, do portal UOL: “O filme não questiona a religião, ou questiona um pouquinho, mas também explica porque as pessoas precisam dela”.

Em Capitão Phillips e 12 Anos de Escravidão, as chagas históricas fazem o convívio humano, por nossa culpa, nossa tão grande culpa, um processo inviável. Ambos têm como origem o período colonial. Um trata de um sequestro real e outro, de um sequestro histórico. Em ambos temos motivos de sobra para abandonar a fé: a fé na humanidade. Mas seus personagens insistem. Por uma questão de sobrevivência. Em 12 Anos, vencedor do Oscar de Melhor Filme, o protagonista, Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor), cumpre uma espécie de calvário até ser reconhecido não só como um homem livre, mas como um homem humano. Nas fazendas onde Deus não existe, conforme diz a personagem de Lupita Nyong’o, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante, os escravos passam as horas na plantação a cantar músicas de louvor à espera de uma redenção. Até a Abolição, são reconhecidos apenas como propriedades, pelas quais se paga e sobre quem os donos podem decidir o destino, os pensamentos e as emoções. A tragédia tinha base jurídica à época, mas em mais de um momento o recado, em forma de esperança, é repetido pelas vítimas de um pedaço macabro da História: “nada disso será impune, pois além da Terra há a justiça divida”. Essa esperança guiou todos os povos massacrados ao longo da História pela travessia do deserto. A consagração da Academia ao filme de Steve McQueen não deixa de ser uma redenção a essa travessia.

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