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O Oscar da realidade

Os documentários concorrentes ao prêmio oferecem muito mais diversidade, tensão e emoção que a lista de ficções

No streaming. O longa-metragem Vulcões e os curtas-metragens Haulout e Stranger at the Gate mergulham em questões políticas e ambientais - Imagem: Disney+, Karl Schroeder e Festival de Berlim
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A história já se repetiu 95 vezes. Mesmo assim, todos os anos o público que confia nas escolhas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood vai conferir o listão de indicados. E a cada ano aumenta o número de filmes que nem os mais fiéis seguidores do Oscar conseguem defender.

Mas o prêmio, ao mesmo tempo que tem o poder de aumentar a bilheteria das bombas que dominam as categorias principais, dá visibilidade a produções que, sem seus holofotes, dificilmente receberiam atenção.

É o caso dos documentários. Divididos nas categorias de curta e longa, os dez títulos sobre histórias reais oferecem muito mais diversidade, tensão e emoções que os longuíssimos longas na disputa de melhor filme.

Neste ano, apenas dois dos dez indicados na categoria principal têm até duas horas de duração. Com as 3h12 de ­Avatar: O Caminho da Água, por exemplo, é possível maratonar todos os curtas documentais e ainda sobra minutagem para assistir a um episódio da série favorita.

E se no caso do listão das ficções a principal janela de exibição ainda são as salas de cinema, sete dos dez documentários estão disponíveis no streaming. Dissonância positiva em relação à hegemonia de só um tipo de cinema entre as ficções, esse conjunto de filmes reúne uma diversidade de origens, temas e línguas.

Dois temas mostram-se recorrentes. Enquanto a aliança do autoritarismo com a corrupção está representada em dois retratos de personagens que enfrentaram os superpoderes de governantes, o lugar dos humanos na natureza aparece em quatro produções.

O curta-metragem O Efeito ­Martha Mitchell (Netflix) e o longa Navalny (HBO Max) apresentam dissidentes como figuras quase heroicas. O primeiro resume o papel da personagem-título, esposa do procurador-geral do governo ­Nixon, nas investigações do escândalo Watergate, que culminou na renúncia de Nixon à Presidência dos EUA, em 1974.

A direção da dupla Anne Alvergue e Debra McClutchy condensa a personalidade rica em contradições de Martha, sua adesão oportunista à política e, ao mesmo tempo, seu não lugar em um meio exclusivamente ocupado por homens.

Já o retrato do dissidente russo Alexei Navalny abraça a cruzada do protagonista contra a autocracia de Vladimir Putin. A escolha faz com que o filme seja, sobretudo, um eco do uso astuto que Navalny e sua equipe fazem das mídias sociais.

Ao contrário dos personagens quase super-heróis de Top Gun e Avatar, os deste conjunto de filmes são super-humanos

Num segundo nível, mais relevante, Navalny, do canadense Daniel ­Roher, mapeia a reconfiguração da democracia imposta pelas redes e os processos de criação de narrativas e de sequestro da atenção que alteraram de forma incontornável a concepção de “política”.

A política também se manifesta como efeito colateral em Stranger at the Gate. O curta (canal da revista The New Yorker, no YouTube) mergulha na cabeça de um militar obcecado com a noção de inimigo. Longe das batalhas, ele concebe um ataque para matar mais de 200 muçulmanos numa mesquita. O filme mostra o perigoso fundamentalismo abrigado na América profunda.

Outros tipos de relações de poder emergem dos filmes que procuram olhar para a posição dos humanos diante da natureza. Essas relações são tanto de supremacia quanto de insignificância, e o que dois curtas e dois longas na ­disputa pelo Oscar procuram fazer é nos dar a dimensão desmesurada dos distúrbios climáticos ou geológicos

O curta indiano Como Cuidar de um Bebê Elefante (Netflix) é o trabalho mais frágil. Um casal que vive numa área de proteção animal na Índia cuida de dois elefantes órfãos, desgarrados das manadas durante o êxodo provocado por queimadas, seca e desequilíbrios ambientais.

Acontece que a estreante Kartiki ­Gonçalves satura o curta de música e cenas sentimentais e, em busca de empatia pela fofura dos bebezões com tromba, acaba por amenizar o impacto da questão ambiental

Já o excelente longa indiano Tudo o Que Respira (HBO Max), de Shaunak Sem, duplica o impacto da degradação ambiental registrando, de modo aparentemente banal, o trabalho de um trio de jovens que resgata e trata milhafres doentes na área urbana de Nova Délhi.

O número crescente de milhafres incapacitados de voar e seguir suas rotas migratórias é o fio condutor do filme, mas o diretor desdobra o tema da fragilidade e do colapso para as perseguições a minorias religiosas que ameaçam a comunidade à qual pertencem os jovens que cuidam dos animais. O risco de extinção parte assim do muito específico para o conjunto dos seres. Afinal de contas, como Tudo o Que Respira lembra, “a vida é parentesco”.

O início do curta russo Haulout (no canal da The New Yorker no YouTube) sugere um filme de guerra. Um homem em trajes militares num posto de observação transmite mensagens sobre o que pode ser a invasão de uma ilha deserta. Numa reviravolta sensacional, sua condição de único ser humano num espaço inóspito ganha, porém, outra dimensão e o documentário torna-se quase uma ficção científica – destacando que o apocalipse é real.

Vulcões: A Tragédia de Katia e ­Maurice Krafft (Disney+), tradução mais que equivocada do original Fire of Love, explora o arquivo com os registros das dezenas de expedições feitas pelo casal de vulcanólogos franceses.

A documentarista Sara Dosa incorpora as imagens espetaculares de erupções e situações de risco extremo à dimensão da intimidade, revelando como a paixão entre Maurice e Katia se soldava na loucura que eles tinham por magmas, gases sulfúricos e avalanches.

O filme oferece também uma reinterpretação de escalas, projetando as figuras humanas como miniaturas, pontos ínfimos diante da magnífica proporção dos fenômenos vulcânicos. Seria bom todo mundo saber que num triz vira pó. Ao contrário dos personagens quase super-heróis de Top Gun e Avatar, estes são ­super-humanos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O Oscar da realidade “

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