Cultura

O mito recontado por Scorsese

‘Os Assassinos da Lua das Flores’ é um magnífico épico sobre como o Oeste americano foi realmente conquistado

Gangsterismo. O diretor (abaixo) às vésperas dos 82 anos, apresenta seu filme mais rico e forte em três décadas. A saga é interpretada por De Niro e DiCaprio (acima)
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O destino sorriu para a nação indígena Osage, em Oklahoma, no Centro-Sul dos Estados Unidos. A reserva fica num oásis de ouro negro e o povo da Primeira Nação tornou-se multimilionário com o petróleo. Eles percorrem as estradas de terra em Buicks com motoristas, jogam golfe nas pradarias e pegam aviões particulares para dar umas voltas.

Mas essa nova fortuna traz perigo: eles precisam tomar cuidado para não serem mortos. Como bem sabemos, a história do Ocidente é de exploração e massacres.

Os assassinatos de Osages na década de 1920 deram origem ao best seller de não ficção Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI (Companhia das Letras, 392 págs., 77,90 reais), lançado originalmente em 2017, que revelou centenas de mortes inexplicáveis. O livro de David Grann, autor conhecido também por seu trabalho na revista The New Yorker, constitui a base do magnífico épico de Martin Scorsese.

Assassinos da Lua das Flores, produção da Apple e da Paramount, é uma saga de época sobre o gangsterismo industrial nos vastos espaços abertos da América, interpretada vigorosamente por Leonardo ­DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone.

Este é o primeiro filme de Scorsese apresentado no Festival de Cannes desde Depois de Horas, de 1985. É também o filme mais rico e forte que ele fez em quase 30 anos. De volta da guerra, Ernest Burkhart (DiCaprio) precisa de dinheiro, de um novo começo e, talvez, de uma jovem esposa. Seu tio, William Hale (De Niro), providencia todos os três. Hale é um barão do gado e, portanto, já é rico.

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Mas uma fortuna não é suficiente – talvez nunca seja – e, por isso, ele conduz Ernest na direção de Mollie (­Lily ­Gladstone), que detém os direitos de propriedade sobre os depósitos de petróleo em suas terras. Se Ernest se casar com Mollie, ele e Hale imediatamente ganharão o controle da propriedade. O que Mollie lucra com o acordo é mais duvidoso.

“O Coiote quer dinheiro”, diz, sorrindo, Mollie, frustrando, de cara, o jogo de Ernest. Mas Scorsese mostra, de modo efetivo, que a posição dela é frágil e que, apesar de sua riqueza, os ­Osages sabem que não podem abrir mão do apoio de seus patronos brancos. Além disso, Mollie é diabética e precisa de doses regulares de insulina. As mulheres Osages, explica Hale gentilmente, parecem nunca chegar a uma idade madura.

De Niro está em ótima forma como o grande tio Bill Hale, que combina a autoridade folclórica de Lyndon Johnson com o brilho cruel de Bill Cosby. É um desempenho tão poderoso que, num filme menor, poderia ter gerado certo desequilíbrio.

Scorsese, no entanto, transforma essa presença em parte da receita. De Niro é, para o diretor, mais um instrumento numa orquestra poderosa, complementada por DiCaprio, Gladstone e Jesse Plemons no papel de um rígido investigador federal.

Assassinos da Lua das Flores é monumentalmente longo, com seus 206 minutos, e se move em ritmo lento. Mas Scorsese, às vésperas de seus 82 anos, sabe para onde está indo e quase não desperdiça um segundo. O filme é sinuoso à moda antiga, um clássico americano instantâneo que, em sua atenção aos detalhes e sua raiva justa e contida, remete a Steinbeck .

Nenhum homem, obviamente, se considera um monstro. Mesmo aqueles que brincam de Deus afirmam fazê-lo por amor. E o mesmo acontece com Bill ­Hale, que diz se preocupar profundamente com os Osages, enquanto eles lutam contra o alcoolismo, a depressão e o roubo das próprias terras, e enquanto os corpos parecem se empilhar a cada dia.

“Eu os amo, mas da noite para o dia eles desapareceram”, suspira ele, no momento do filme em que as nuvens de tempestade começam a se formar. O tempo deles acabou, acredita Hale, enquanto o seu está apenas começando.

A constatação de que o combustível fóssil subterrâneo é feito de muita matéria em decomposição apenas aumenta a sensação de que Scorsese quis aqui tecer um mito alternativo a respeito da gênese da América.

Os Assassinos da Lua das Flores desdobra-se como uma tragédia musculosa e sombria sobre como o Oeste americano realmente foi conquistado, reformulando o Éden como uma pastagem árida na qual a única fruta é o petróleo bruto e o sangue no solo rega as sementes do futuro. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O mito recontado por Scorsese’

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