Cultura

O melhor dos tempos

‘A vida gritando nos cantos’ reúne crônicas de Caio Fernando Abreu sobre Caetano, João Gilberto, Jorge Luis Borges e Woody Allen

No mel da vida. Sem amigos, o escritor não concebia um dia sequer. Nos textos para jornal, dizia neutralizar o sofrimento com as "amizades telefônicas" e as cartas, como se usava antes da internet
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A vida gritando nos cantos


Caio Fernando Abreu


Nova Fronteira, 248 págs., R$49,90

Caio fernando Abreu (1948-1996) amava o presente. E amava o que vivia a ponto de por vezes detestá-lo também, em busca de um conserto. É claro que isto não fazia o seu talento como escritor. Ele nascera com a palavra, destinado a transformá-la em uma literatura casual muito enganosa.

Era inteligível sem deixar de entrever a profundidade. Dizia chapinhar na gota de mel dos prazeres sem se iludir sobre o sal, o contratempo que se seguiria às coisas boas.    Às vezes encontrava um girassol na Avenida Paulista, como em uma das crônicas escritas para o Caderno 2, e isto lhe parecia extraordinário a ponto de quase emular a flor no asfalto de Carlos Drummond de Andrade.

Neste livro que inclui mais de uma centena de seus textos para O Estado de S. Paulo, jamais antes publicados em livro, ele nadava no mel dos sábados, ou seja, na doçura de Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Luis Borges, Woody Allen, Eliete Negreiros, Claudia Wonder (o amigo Cláudia) ou Madame Satã (a discoteca), para só então enfrentar a dor dos domingos, quando a “gorda” realidade se insinuava. Neutralizava o sofrimento robusto com as “amizades telefônicas” e as cartas, usuais antes da internet.

Morreu em 1996, 48 anos incompletos, sem saber, aliás, que viraria febre nas redes sociais, pelo que disse ou jamais dissera, à moda do que aconteceria também com Clarice Lispector, uma entre suas inúmeras e insistentes proximidades, abertas como infinito leque desde o Rio Grande do Sul onde nasceu. Quem lê esses dois, por alguma razão quiçá advinda de um estilo a revolver intimidades, não raro se mete a adivinhá-los.

O fato é que, sem amigos, Caio não poderia conceber um dia. Mas ele sofria ao encarar o povo das alturas, Tom Jobim, Fernanda Torres ou Miriam Rios, ainda que durante um festival de cinema. Combatia as estrelas com o dicionário da rua. Na São Paulo de 1987, ele explicava, “dar release” significava ir a um lugar sem conhecidos e ter de dizer onde estudava, o filme preferido, o signo.

Ele exemplificava o uso: “A festa tava média, fiquei dando release o tempo todo”. Programa de índio era “nem cheirando”.  Como na frase: “Show do Beto Guedes? Nem cheirando”. Um banheiro úmido e estragado, batizara de “Fassbinder”. Era o pior e o melhor dos tempos para esse escritor, de quem a Nova Fronteira relança ainda neste ano Os Dragões Não Conhecem o Paraíso e Pequena Epifania, mas eram tempos seus.

A vida gritando nos cantos


Caio Fernando Abreu


Nova Fronteira, 248 págs., R$49,90

Caio fernando Abreu (1948-1996) amava o presente. E amava o que vivia a ponto de por vezes detestá-lo também, em busca de um conserto. É claro que isto não fazia o seu talento como escritor. Ele nascera com a palavra, destinado a transformá-la em uma literatura casual muito enganosa.

Era inteligível sem deixar de entrever a profundidade. Dizia chapinhar na gota de mel dos prazeres sem se iludir sobre o sal, o contratempo que se seguiria às coisas boas.    Às vezes encontrava um girassol na Avenida Paulista, como em uma das crônicas escritas para o Caderno 2, e isto lhe parecia extraordinário a ponto de quase emular a flor no asfalto de Carlos Drummond de Andrade.

Neste livro que inclui mais de uma centena de seus textos para O Estado de S. Paulo, jamais antes publicados em livro, ele nadava no mel dos sábados, ou seja, na doçura de Caetano Veloso, João Gilberto, Jorge Luis Borges, Woody Allen, Eliete Negreiros, Claudia Wonder (o amigo Cláudia) ou Madame Satã (a discoteca), para só então enfrentar a dor dos domingos, quando a “gorda” realidade se insinuava. Neutralizava o sofrimento robusto com as “amizades telefônicas” e as cartas, usuais antes da internet.

Morreu em 1996, 48 anos incompletos, sem saber, aliás, que viraria febre nas redes sociais, pelo que disse ou jamais dissera, à moda do que aconteceria também com Clarice Lispector, uma entre suas inúmeras e insistentes proximidades, abertas como infinito leque desde o Rio Grande do Sul onde nasceu. Quem lê esses dois, por alguma razão quiçá advinda de um estilo a revolver intimidades, não raro se mete a adivinhá-los.

O fato é que, sem amigos, Caio não poderia conceber um dia. Mas ele sofria ao encarar o povo das alturas, Tom Jobim, Fernanda Torres ou Miriam Rios, ainda que durante um festival de cinema. Combatia as estrelas com o dicionário da rua. Na São Paulo de 1987, ele explicava, “dar release” significava ir a um lugar sem conhecidos e ter de dizer onde estudava, o filme preferido, o signo.

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