Cultura

O estranho caso do astro mundialmente famoso que ninguém conhecia

Dentre as tramas de Philip K. Dick, esta é uma das mais enredadas e irônicas e das mais povoadas de personagens ambíguos e complexos, o que não é dizer pouco

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“Enquanto a maioria dos autores de ficção científica do século 20 aparente estar absolutamente datada, Dick oferece uma visão de futuro que captura a aura de nosso tempo”, diz a nota publicitária da contracapa, que cita a Wired. Mas convém prevenir o leitor de que a matéria da revista (“The Second Coming of Philip K. Dick” por Frank Rose, de 2003) não se refere ao livro em questão, “Fluam, minhas lágrimas, disse o policial” (Aleph,256 págs., R$ 46) e sim ao conjunto da obra. E de que há um bocado de licença poética embutida nessa frase. A maior parte das obras de Philip K. Dick é claramente datada nos cenários, nas ideias, nos comportamentos dos personagens e alusões políticas, inclusive esta.

Neste romance, datado também no sentido literal – a história começa nos EUA, em 11 de outubro de 1988 –, itens futuristas isolados como carros voadores, drogas mirabolantes, sexo virtual pela rede telefônica (apesar de não haver outros sinais de algo parecido com uma internet) e monitoramento à distância com microtransmissores, convivem com discos de vinil, microfilmes, telefones públicos que funcionam com moedas (mais precisamente, “quinques de ouro”, paradoxalmente apresentados como dinheiro do futuro), num cenário distópico cujo fundamento é um Estado policial mundial surgido após uma guerra civil entre o governo e estudantes (alguns dos quais ainda resistem em kibutzim subterrâneos sob campi universitários em ruínas), acompanhado de eliminação eugênica gradual da raça negra. O pano de fundo não se limita a apontar para o ano em que foi escrito: acena furiosamente para 1974, ou mais precisamente para os desdobramentos do maio de 1968 e o governo Nixon.

Apesar do articulista da Wired, a razão pela qual esse e outros romances de PKD continuam a parecer atuais e legíveis e a inspirar adaptações de sucesso (este, em especial, já gerou uma peça de teatro e está para ser transformado em filme) não é por capturarem uma mítica “aura de nosso tempo” e sim porque seu núcleo é atemporal. Como em praticamente todas as obras desse autor, o mote é o questionamento da realidade objetiva e da identidade pessoal, tema que é não é mais atual hoje do que o foi para Mahavira, Buda ou o proverbial sábio chinês que não sabia se era uma borboleta sonhando que era um homem ou um homem que tinha sonhado ser uma borboleta (mais precisamente, Zhuangzi, século III a.C.).

Neste caso, um famoso cantor e astro da tevê com 30 milhões de telespectadores, podre de rico e geneticamente modificado para ser carismático e atraente, subitamente acorda num miserável quarto de hotel e descobre que se tornou literalmente um joão-ninguém: não tem documentos, ninguém o reconhece e não há nenhum indício de sua existência nos arquivos da polícia. Problema que, é claro, se torna muito mais sério quando se vive num Estado policial a serviço dos ricos e poderosos e é preciso passar por postos de verificação de identidade a cada esquina e suspeitos são rotineiramente internados pelo resto da vida em campos de trabalhos forçados no Alasca. Esse regime orwelliano, cabe observar, é descrito de forma bem superficial: serve menos para se tratar de política do que para complicar a vida do protagonista e criar uma camada adicional de dúvidas e questionamentos sobre a natureza da realidade.

Para sobreviver no submundo enquanto tenta entender o que lhe aconteceu, o astro Jason Taverner, um elitista arrogante e preconceituoso que despreza seus fãs em geral e as mulheres em especial, tem de se arranjar com um maço de dinheiro que lhe restou no bolso e sua habilidade em seduzir mulheres para ajudá-lo a produzir documentos falsos e se esconder. A inexperiência o leva, porém, a se envolver com informantes da polícia e a estranha ausência de qualquer registro sobre ele nos bancos de dados oficiais, num regime que supõe ter informações detalhadas sobre a vida de cada cidadão, chama a atenção de um general da polícia, aquele que vai derramar as lágrimas do título. É um antagonista mais interessante que o protagonista e tem um estranho relacionamento com sua irmã gêmea, personagem ainda mais peculiar e decisivo para a solução do mistério, incrivelmente fantasiosa e rebuscada.

Dentre as tramas de Philip K. Dick, esta é uma das mais enredadas e irônicas e das mais povoadas de personagens ambíguos e complexos, o que não é dizer pouco. Também é a que, apesar de passar longe do erotismo, faz a abordagem adulta e realista da sexualidade, por mais que a pontue de momentos misóginos, homofóbicos ou moralistas. Os pontos fracos estão no excesso de pontas soltas e de subtramas que não levam a parte alguma e no epílogo inconsistente e anticlimático. É como se o autor se divertisse à custa do leitor, zombando de suas expectativas e de sua credulidade. Não há como duvidar, porém, de que este é mais um dos livros de Dick com muito potencial para se tornar um filme de sucesso. Por mais que diretores e roteiristas virem do avesso, como de hábito, o enredo, o caráter dos personagens, o cenário e as visões filosóficas e políticas do autor, sua premissa fundamental – a estranha situação de um astro mundialmente famoso que ninguém conhece – é interessante o suficiente para sustentar quase qualquer coisa que se queira fazer com ela.

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