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O efeito Nobel

Como a Fósforo conquistou os direitos sobre a obra de Annie Ernaux e que impactos o maior prêmio literário tem sobre uma pequena casa editorial

Selo e reimpressões. Os sócios Carvalho Filho, Fernanda e Rita viram, pela primeira vez, as obras da editora figurar na lista dos mais vendidos - Imagem: Pablo Saborido
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Na última semana, a Fósforo, pequena editora criada em São Paulo há um ano e meio, apareceu pela primeira vez em algumas listas dos livros mais vendidos. Na lista do portal PublishNews, por exemplo, foram três os títulos a entrar no ranking de não ficção: Os AnosA Vergonha e O Lugar. Todas as obras são de Annie Ernaux, vencedora do Nobel de Literatura de 2022, anunciado no início do mês, na Suécia.

Era também da autora francesa o livro que marcou a chegada da Fósforo ao mercado, em 2020. No dia 10 de maio daquele ano, sob o turvamento do isolamento social, foi lançado O Lugar, escrito em 1983.

O encontro entre a editora sediada na esquina da Praça da República com a Rua 24 de Maio, no Centro de São Paulo, e a premiada escritora nascida em ­Lillebone, na França, em 1940, remonta ao tempo em que a Fósforo não existia.

Em 2018, a editora Rita Mattar, vinda da Companhia das Letras, foi contratada pela Três Estrelas, pertencente ao Grupo Folha. O selo, voltado à não ficção, teria pouco tempo de vida após a chegada de Rita, mas, nesse pouco tempo, ela contratou o livro Os Anos, de Annie, autora até então inédita no Brasil.

“Foi, um pouco, um contrabando”, brinca Rita, referindo-se ao fato de que a obra transita entre a ficção e a não ficção. “Naquele momento, havia outras editoras interessadas no livro e a ­Gallimard, que tem os direitos da obra dela na França, pediu para mandarmos o que eles chamam de best offer (melhor oferta). Fiz uma carta que era, basicamente, uma oferta apaixonada.”

A escrita pungente de Annie tinha sido recomendada a Rita por dois colegas, um alemão e um inglês. “Fiquei enlouquecida. E, mesmo estando em uma editora pequena, resolvi tentar”, diz. Ela tinha a impressão de que a trajetória da autora, que ascendeu socialmente por meio dos estudos, encontraria eco no Brasil. Embora o livro tenha sido de fato bem recebido por quem o leu, sua repercussão foi restrita.

Mas a história de Annie com o mercado editorial brasileiro estava apenas começando. Quando, em 2020, Rita criou, ao lado de Fernanda Diamant, ex-curadora da Festa Literária de Paraty (Flip), e de Luís Francisco Carvalho Filho, advogado, a Fósforo, ela imediatamente entrou em contato com a Gallimard e pediu a migração dos direitos.

Depois de O Lugar, foi lançada, em 2021, a reedição de Os Anos, que teve repercussão maior que a primeira. Este ano, chegaram às livrarias O Acontecimento (2000), lançado simultaneamente com o filme de mesmo nome, ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza, e A Vergonha (1997).

Em meados de novembro, ficam prontos O Jovem, o mais recente trabalho de Annie, que contém brevíssimas 56 páginas, e uma caixa reunindo todos os lançamentos. Também no mês que vem, ­Annie vem ao Brasil participar da Flip.

“Uma editora é, na verdade, um negócio feito para dar errado no capitalismo”, diz Fernanda Diamant

Se a presença de Annie no catálogo – que tem, ao todo, 58 títulos – é, desde o início, um signo de prestígio para a Fósforo, a chegada do Nobel teve uma imediata consequência comercial. E isso não é uma regra no mercado editorial, inclusive porque o ganhador, algumas vezes, nem sequer tem editora no Brasil – caso do vencedor de 2021, Abdulrazak ­Gurnah, contratado pela Companhia das Letras depois do prêmio.

Annie não apenas tinha editora, como estava em plena evidência. “O prêmio devia vir com um protocolo, em especial para uma editora nova como a nossa”, diz, rindo, Rita. “No dia da divulgação, foram três frentes de ação: divulgar o prêmio, providenciar aspas para a imprensa e correr com a reimpressão. Tínhamos estoque de todos os livros, mas em um volume incapaz de segurar um Nobel.”

A equipe comercial optou por tentar atender todas as livrarias, mas com um volume menor do que o solicitado. Neste momento, Os Anos já aparece como esgotado no site da editora. “De repente, todo mundo queria o livro”, diz Rita.

Fernanda Diamant, que também é dona da Livraria MegaFauna, no Edifício Copan, na Praça da República, ao mesmo tempo que não nega o impacto positivo do selo do Nobel no futuro da editora, evita soltar fogos de artifício.

“Uma editora é um projeto de longo prazo. Não é possível recuperar o investimento de forma rápida, a não ser que optássemos por uma linha mais comercial ou tentássemos comprar best sellers”, pontua, quando questionada sobre o modelo de negócios da Fósforo. “Um modelo como o nosso depende do tempo para se tornar sustentável. Precisamos ter um catálogo consistente, com alguns livros que tenham venda contínua.”

Enquanto fala sobre o catálogo e sobre a busca pela viabilização econômica daquilo que parece ser, antes de tudo, uma paixão, Fernanda faz uma pausa e resume: “Uma editora é, na verdade, um negócio anticapitalista, feito para dar errado no sistema capitalista. Você imagina algum outro produto lançado com 3 mil unidades para serem vendidas ao longo de cinco anos? É um equilíbrio delicado”.

Luís Francisco Carvalho Filho, advogado de longa carreira, mas neófito no mundo editorial, diz que esse equilíbrio, no caso da Fósforo, é buscado por meio de um catálogo amplo o suficiente para poderem ser contemplados tanto novos autores quanto autores esquecidos, que estão em domínio público. “Mas, basicamente, o que é ter uma editora na atual conjuntura brasileira?”, se pergunta. “É um ato de resistência.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O efeito Nobel”

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