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O diabólico prazer da confidência

Os diários de Lúcio Cardoso revelam a potência de um autor que, no auge dos romances realistas, sondou os dilemas existenciais em um País periférico

O escritor tornou-se conhecido com Maleita, de 1934 – Imagem: Arquivo Otto Lara Resende/Acervo IMS
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Por muito tempo a literatura foi, no Brasil, uma das principais formas de figuração da identidade nacional. A ela cabia revelar aquilo que não era evidente: o que, afinal, era o Brasil, país que passara por três séculos de colonização e quase quatro de escravidão?

Até meados do século XX, esta era a grande “missão” da literatura brasileira. Nem por isso, ainda que quase sempre à margem, perspectivas alternativas deixaram de ilustrar a cena literária nacional. É aqui que podemos localizar Lúcio Cardoso, escritor, poeta, dramaturgo e roteirista cuja trajetória coincide com o ciclo desenvolvimentista.

Nascido no interior de Minas Gerais, em 1912, e radicado no Rio de Janeiro, onde viria a falecer em 1968, Cardoso começou escrevendo romances de ­teor “social”, tais como Maleita, de 1934, e Salgueiro, do ano seguinte. Mas foi ao mergulhar em terrenos distintos daqueles tematizados pelas visões “realistas” sobre o País que ele pôde explicitar a originalidade de seu trabalho.

A guinada em sua obra aconteceu a partir de 1936, quando publicou Luz no Subsolo, em um percurso cujo auge seria atingido em 1959, com o lançamento de Crônica da Casa Assassinada, seu romance de maior repercussão.

E nada melhor para compreender esse processo criativo aparentemente “fora do lugar” do que seus diários, lançados em dois volumes, pela Companhia das Letras, dentro de um projeto mais amplo da editora de reeditar a obra do escritor.

O primeiro volume é dedicado às notas redigidas até 1951. Nelas, Cardoso exercitava o “diabólico e raro prazer da confidência”, fazia citações literárias e refletia sobre a religião. O segundo ­reúne os diários de 1951 a 1962, aí incluídas páginas secretas, até aqui inéditas, além de ensaios publicados na coluna “Diário Não Íntimo”, no jornal A Noite.

Concebidos pelo próprio Cardoso como peça decisiva de seu trabalho, os diários nos revelam um escritor no qual a “dura tirania da realidade”, como escreve, aparece sempre filtrada por uma ótica “subjetiva”. O predomínio da subjetividade não significa, porém, alheamento da realidade objetiva.

Como nos ensina o crítico alemão Theodor Adorno, diante de um mundo tido como asfixiante, a dimensão social da arte pode residir, justamente, no seu deslocamento imaginário em relação aos padrões culturais estabelecidos.

O predomínio da subjetividade não significa, nos textos, um alheamento da realidade objetiva

E é nesse sentido que podemos compreender a literatura “intimista” de Lúcio Cardoso, inclusive a especificidade subversiva de seu catolicismo. Nos diários, a liberdade subjetiva, que dá margem a meditações sobre literatura, cinema, teatro, religião, ciência e relações afetivas (homossexuais), apresenta-se em tensão permanente com a “complicada maquinaria dos fatos comuns”.

Perspectiva semelhante pode ser observada em Crônica da Casa Assassinada, romance em que a alternância de narradores, cada qual com seu ponto de vista, acaba por revelar-se um quadro ampliado da vida familiar do clã dos protagonistas.

Nos dois volumes de Todos os Diários, muito bem organizados por Ésio Macedo Ribeiro, que também assina o prefácio, vemos em ato o desenlace criativo de um escritor que apenas recentemente vem conquistando o reconhecimento merecido.

Talvez porque, num momento em que o presente é muito diferente do futuro outrora prometido, tenha chegado a hora de o Brasil resgatar aqueles escritores que, há muito, já sondavam os dilemas existenciais da nossa modernidade periférica. E Lúcio Cardoso, sem dúvida, está entre eles. •

*Fabio Mascaro Querido é professor


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Foi durante o confinamento pandêmico que Patrick Modiano, autor francês ganhador do Nobel, nutriu sua imaginação para a construção de Cena de Um Crime (Record, 176 págs., 59,90 reais). No romance, o protagonista, fechado em uma casa, rememora um crime jamais solucionado.

A memória e a busca pela reconstrução do passado – com imagens que, por vezes, remetem mais ao delírio que à realidade – alinhavam também as três novelas de Yoko Ogawa reunidas em A Piscina; Diário de Gravidez; Dormitório: Três Novelas (Estação Liberdade, 168 págs., 56 reais).

A protagonista de Águas-Vivas Não Têm Ouvidos (Fósforo, 200 págs., 69,90 reais) convive, desde pequena, com a perda auditiva. Adéle Rosenfeld, finalista do Prêmio Goncourt, vale-se do humor para construir uma narrativa sobre as diferentes formas pelas quais o mundo pode ser percebido.

Publicado na edição n° 1267 de CartaCapital, em 12 de julho de 2023.

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