Cultura

cadastre-se e leia

Nova representação

Cidade de Deus, a série, olha para a comunidade sob a perspectiva da resistência e com um um viés mais otimista

20 anos depois. Thiago Martins (à esq.), no papel de Braddock, e Alexandre Rodrigues (acima), como Buscapé, o fotógrafo narrador, são dois dos atores mantidos na produção da plataforma HBOMax rodada no Parque Novo Mundo, zona norte de São Paulo – Imagem: Renato Nascimento e Lais Lima/Tangerina
Apoie Siga-nos no

O Parque Novo Mundo, na Zona Norte de São Paulo, é descrito, no site da prefeitura, como um lugar marcado pela carência de espaços públicos e áreas verdes e pelas moradias precárias. Localizado entre a Marginal Tietê e as rodovias Presidente Dutra e Fernão Dias, o bairro tem sido também, nos últimos meses, o lugar onde se recriam os ambientes e as histórias da Cidade­ de Deus, comunidade da Zona Oeste do Rio que dá nome a um dos filmes mais impactantes da história do cinema brasileiro e, agora, a uma série dele derivada.

A diária acompanhada por ­CartaCapital tinha começado às 5 da tarde e iria até as 5 da manhã do dia seguinte. Era a décima primeira de 14 semanas de filmagens. Na sequência rodada quando a imprensa chegou ao set, Cíntia (Sabrina Rosa) e Delano (Dhonata Augusto) têm um diálogo que sintetiza o espírito da nova produção:

– Cresci escutando a senhora dizer que a gente tem de mudar as coisas de dentro para fora, mãe. Tentei fazer isso na polícia. Se a senhora sair do centro comunitário, quem vai fazer isso?

“Tínhamos, desde o começo, uma ideia de reparação histórica”, diz a executiva Silvia Fu

O mote do filme, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”, foi substituído por outro. “Agora é: ‘A gente vai ficar por aqui, e a gente vai lutar’. Vinte anos depois, as histórias são contadas da perspectiva dos moradores, dos integrantes da comunidade que não estão envolvidos com a criminalidade. Também temos muitas narrativas femininas”, diz Aly Muritiba, que assumiu a direção do projeto. “A gente fala de um universo criminal, das milícias, mas sempre do ponto de vista de quem sofre as consequências dessa realidade.”

Muritiba já teve filmes selecionados para festivais como San ­Sebastian (Para Minha Amada Morta, 2015), ­Sundance (Ferrugem, 2018), Veneza (Deserto Particular, 2021) e para a Semana da Crítica de Cannes (Pátio, 2013) e dirigiu séries como O Hipnotizador (HBO), Carcereiros (Globo), O Caso Evandro (Globo Play) e Cangaço Novo (Prime Video).

Nascido em Mairi, no sertão baiano, ele mudou-se para São Paulo aos 20 anos para estudar. Trabalhava como bilheteiro da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), enquanto cursava História, e, depois, passou em um concurso público para agente penitenciário.

“Quando me convidaram para dirigir a série, pensei na responsabilidade que era. Mas também pensei que era melhor que o projeto caísse nas mãos de alguém como eu. São poucos os carcereiros que viraram cineastas”, diz, em tom de brincadeira, mas demarcando a questão de classe constituinte de nossa cinematografia. “Quando Cidade de Deus estreou, nem vi. Eu, sinceramente, nem ouvi falar do filme. Eu era bilheteiro de trem. Só fui ver quando comecei a estudar cinema.”

Depois do sucesso. A atriz Roberta Rodrigues, que também volta como Berenice, diz ter passado anos fazendo papéis de empregada doméstica na TV – Imagem: Renato Nascimento e 02Filmes/Vídeofilmes

Se, em 2002, as classes menos favorecidas foram integradas ao projeto no elenco, na figuração e nas funções auxiliares da equipe técnica, em 2023 a ideia de representatividade teve de ser aprofundada. “Tínhamos, desde o começo, uma ideia de reparação histórica da equipe envolvida. O Cristiano Conceição, por exemplo, que foi operador de câmera no filme, é diretor de fotografia na série”, diz Silvia Fu, líder de conteúdo roteirizado da Warner Bros. Discovery, empresa à qual pertence a HBOMax, plataforma produtora da série.

A outra empresa produtora, a O2, que botou de pé o filme no início dos anos 2000, faz eco à fala de Silvia. “Lá atrás, a gente estava desbravando esse tipo de trabalho”, diz a sócia Andrea Barata Ribeiro. “Hoje, sabemos como chegar numa comunidade. Um set é uma invasão e a convivência tem de ser pacífica. É fundamental também que a comunidade faça parte do processo. Na série, temos pessoas da comunidade escrevendo o roteiro, inclusive. No Cingapura 12, outra das locações, ouvi uma moradora falando que a série estava empregando mais de cem pessoas ali.”

Segundo Andrea, o desejo de transformar o livro de Paulo Lins em série não partiu da O2. O que aconteceu é que, alguns anos atrás, uma produtora francesa quis comprar os direitos do livro para fazer uma série. Mas a O2 tinha aquilo que, no mercado, se chama first option, e fez valer o seu direito.

“Levou tempo até surgir uma ideia que a gente achasse que valia a pena. Era difícil encarar o gigante”, diz ela. “Mas esse recorte dos 20 anos depois nos pareceu um bom gancho.”

A trama narrada em Cidade de Deus, o longa-mnetragem, encerra-se no início da década de 1980. As histórias da série acontecem no início dos anos 2000. O narrador é novamente Buscapé, agora um fotógrafo de sólida carreira. Para os flashbacks serão selecionados materiais do filme que ficaram fora do corte final.

“Quando o filme estreou, nem vi. Eu era bilheteiro de trem’, diz Aly Muritiba, o diretor

Muritiba diz ter procurado manter algumas referências estéticas do estilo que acabou por ganhar o nome de favela movie e, ao mesmo tempo, ter ido buscar inspiração em filmes produzidos em Nollywood, a indústria cinematográfica nigeriana. “Eu queria algo de um cinema popular que não fosse aquele de Hollywood”, diz.

A primeira temporada da série tem mais de 80 locações em São Paulo e incluirá oito diárias no Rio de Janeiro, onde serão filmadas tomadas aéreas e cenas mais abertas, nas quais a cidade se deixa ver. Em busca do clima carioca, a produção trouxe mais de 15 atores da comunidade para São Paulo.

“Quando chegaram no Cingapura, os atores comentaram ter achado muito parecido com Cidade de Deus, que é uma favela horizontal. O Rio, neste momento, seria inviável por questões de segurança”, pondera Muritiba.

Além de moradores da comunidade, o elenco inclui atores do longa-metragem. Alexandre Rodrigues, o Buscapé, vive atualmente em São Paulo e não nega que o convite despertou nele um misto de emoções. “Fiquei com medo. Como contar a história 20 anos depois? Vem uma montanha-russa de sentimentos. O dia em que entendi o que tinha acontecido com a gente foi o dia em que o filme recebeu quatro indicações para o ­Oscar”, recorda.

Buscapé, conta Rodrigues, virou um fotógrafo premiado, com cicatrizes ­reais e simbólicas das guerras que cobriu, e também amadurecido. “Acho que também estou mais maduro”, emenda ele, que seguiu a carreira de ator.

Roberta Rodrigues, a Berenice, também não abandonou o ofício – mas por um triz. “Nesses 20 anos, passamos todos por uma longa caminhada. Cheguei a desistir de ser atriz depois de passar por um episódio de racismo em uma novela”, conta emotiva e orgulhosa de ter conseguido, recentemente, o primeiro papel como protagonista, em Veronika, série ainda inédita, produzida pelo Globoplay em parceria com a AfroReggae.

“Faço uma advogada criminal. Foi o primeiro papel em que eu tinha uma filha, tinha uma mãe. Porque, depois de Cidade de Deus, comecei fazendo papel de empregada em uma novela. Aí veio outra novela e qual era o meu papel? Empregada. Hoje vão, enfim, aparecendo alguns outros papéis para atores pretos, mas ainda ganhamos menos que os brancos.”

Equipe. Rodrigo Carvalho, diretor de fotografia, Meirelles e Muritiba no set paulistano – Imagem: Renato Nascimento

Roberta levanta, por conta própria, o tema da violência desnuda que, à época, gerou críticas ao filme. “Para a gente, o que marcou não foi a violência. Ali, foi a primeira vez que a gente viu tanta gente preta na tela. A gente também viu ­pessoas indo ao cinema pela primeira vez para ver o filme – foi o caso do meu pai e da minha mãe”, diz, enfática e, de novo, emotiva. “Também pela primeira vez, muita gente da comunidade se deu conta de que nós podíamos ser artistas.”

Mas uma conversa com o roteirista Rodrigo Felha, via Zoom, mostra que, passadas duas décadas, se as críticas estéticas esmaeceram diante dos reconhecimentos obtidos pelo filme, as marcas deixadas em parte da comunidade ainda se deixam antever.

“Tô na rua, diretamente de City of God. Sou nascido e criado aqui”, anuncia Felha, assim que aparece na videochamada. Um dos fundadores dos projetos Instituto Arteiros e Central Única das Favelas (Cufa), ele estreou no audiovisual no documentário Falcão, Meninos do Tráfico (2006), produzido pela Cufa, com direção de MV Bill e Celso Athayde. “O Athayde me disse: ‘A gente precisa de alguém para carregar bolsa para o ­camera (man)’”, conta. Depois disso, foi estudar na Escola de Cinema Darcy Ribeiro.

“Como morador, eu digo: o filme foi absolutamente ruim, porque botou um carimbo na comunidade. Pessoas perderam seus empregos e lembro de ter amigos que deixaram de vir me visitar”, afirma. “Como cineasta, sou fã. Quando recebi o convite, fiquei com o pé atrás, mas entendi que meu ponto de vista seria respeitado. A gente vai ter tiro e sangue derramado, mas vai contemplar também a luta, a vitória, o projeto social, a escola de samba.”

Fernando Meirelles, o diretor de ­Cidade de Deus, tornado um dos grandes nomes do cinema brasileiro, olha para trás com a serenidade que lhe é habitual­. A primeira coisa que diz, na entrevista, é que sequer desejava que a série fosse feita. Voto vencido, numa coisa insistiu: não seria o diretor, mas apenas produtor.

Agora que o projeto ganhou vida, não nega, porém, que a possibilidade de ver a história recontada, sob o olhar de hoje e sem que o viés seja apenas o da violência, o alegra. “O filme falava de como o tráfico se instalou. Na primeira temporada da série, a gente vê as milícias se instalando. Nossa ideia é chegar a três temporadas”, revela. “Marielle (Franco) é uma das personagens que pode vir a inspirar outras temporadas.”

Cidade de Deus, segundo Silvia Fu, é o maior projeto da HBOMax. “Tem uma complexidade enorme. Só a figuração chega a ter 150, 200 pessoas em cada diária”, diz ela, lembrando que tal investimento só foi possível por se tratar de um produto com grande potencial internacional.

Encerradas as filmagens, dentro de poucas semanas, a série deve passar um ano na pós-produção – fase na qual serão, por exemplo, aplicadas, às cenas filmadas em São Paulo, os morros do Rio. A data de estreia ainda é uma incógnita. “Mas acho que vai causar barulho”, aposta Andrea, como se tivesse um déjà-vu. •

Publicado na edição n° 1283 de CartaCapital, em 01 de novembro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Nova representação’

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo