Cultura

Nem tudo que vem do céu

Benditas sois vós, pombas de minha cidade, que ainda podeis ensinar-nos muitas lições sobre a vida

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Parado, numa esquina do centro, esperando o semáforo me autorizar a travessia da avenida, não percebi que entre a terra e o céu pairava sobre nós a verde ramagem de uma esplêndida sibipiruna. Sob meus pés, depois notei com espanto, a grossa e macia camada dos dejetos noturnos daquelas famílias aladas que habitam os andares mais altos das árvores e que não eram anjos, não, mas nossas queridas “margosas”, ou pombas, como querem os mais exigentes de exatidão.

Não me dirigia a nenhum encontro protocolar, tampouco a qualquer tipo de reunião formal, com pessoas gradas ou graves. Meu destino, naquele momento e por sorte minha, era o estacionamento, onde deixara o carro duas horas antes.

Os mais velhos continuam afirmando que do céu só coisa boa pode cair: a chuva benfazeja, o maná que alimenta, ou penas de anjos, que se coçam distraidamente sentados nas nuvens. Tenho o maior respeito pelos mais velhos, mas desde hoje cedo me julgo no direito de não lhes dar crédito nenhum. Nem tudo que vem do alto tem parentesco com o anjo Gabriel. Foi o que vi assustado quando senti em meu peito, quase dentro do bolso da camisa, o pequeno baque quase surdo seguido de uma sensação de umidade na altura de meu mamilo esquerdo, bem do lado do coração. Uma umidade ainda quente.

Estive a ponto de repetir essas asnices que nos vêm à mente em ocasiões semelhantes: “Não dou sorte na vida”, “Só comigo, mesmo, estas coisas acontecem”, “Por que justo comigo, meu Deus do céu?”.

O semáforo me autorizou a passagem para o lado de lá, mas não saí do lugar, inteiramente paralisado por grave problema ecológico a fervilhar em minha cabeça. Olhava meio abestalhado para aquela pequena mancha quente, escura e úmida, como se estivesse diante das chagas de Cristo com a responsabilidade de cicatrizá-las. As orelhas de todas as autoridades civis, eclesiásticas e militares deste município devem ter esquentado muitos graus acima do normal naquela hora. Moramos sem reclamar na cloaca das pombas?, perguntei-me indignado.

Com o passar das horas, e enquanto esperava o semáforo mudar de atitude (pois sentia-o muito hostil), tentei pensar com mais calma sobre as causas de tudo aquilo e acabei chegando a alguma reflexão ainda possível a respeito da ação humana como piolho do planeta. Aliviado de todo o rancor inicial, lembrei-me de que fomos nós quem primeiro invadimos o espaço delas; derrubamos suas árvores, botamos fogo em seus ninhos e roçamos suas capoeiras. Sua opção de sobrevivência foi invadir, por sua vez, nosso espaço.

Já era quase noite quando cheguei finalmente ao estacionamento. Vinha pelo caminho pensando nas muitas titicas que o homem tem de suportar como conseqüência de suas próprias ações. E foi assim que me lembrei de asiáticos, africanos, árabes e latino-americanos fazendo cocô, que nada tem de angélico (mas que bendito cocô!), na casa dos outros, daqueles que primeiro invadiram nossos espaços.

Benditas sois vós, pombas de minha cidade, que ainda podeis ensinar-nos muitas lições sobre a vida.

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