Cultura

Negra Li: O lugar da mulher no rap brasileiro e a potência da ancestralidade

Comemorando 25 anos de carreira, a artista relembra sua trajetória e fala sobre protagonismo feminino, machismo e os traumas do racismo estrutural

Foto: Divulgação
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O ano era 2004. Liliane de Carvalho, a Negra Li, marcou a história do rap brasileiro ao se tornar a primeira mulher rapper a assinar contrato com uma grande gravadora, a Universal Music. 

Com a voz marcante e eloquente, a menina da Brasilândia, bairro da periferia de São Paulo, já chamava atenção ao cantar na igreja evangélica que frequentava com a família. Aos 16 anos, recebeu um convite para integrar o grupo RZO, ao lado de Helião, Sandrão e DJ Cia, que se tornaria referência do rap brasileiro. 

“Quando eu comecei a minha carreira, eu via bastante mulheres, mas elas não tinham visibilidade”, conta. A CartaCapital, ela relembra os desafios que viveu e fala sobre o novo momento das artistas negras mulheres.

Confira a seguir.

CartaCapital: Quais são as principais transformações que você vê no cenário do rap que favoreceram o protagonismo feminino? 

Negra Li: A democratização das redes sociais trouxe para a possibilidade mais pessoas conseguirem divulgar seu trabalho e ajudou bastante também na ascensão das mulheres. E também o crescimento do movimento feminista, empoderando elas, unindo forças. 

Quando eu comecei a minha carreira, via bastante mulheres, mas elas não tinham visibilidade. A gente veio de um mundo totalmente machista. O rap é um universo machista. Melhorou muito, mas antes era mais visível porque só havia grupos masculinos, só produtores homens, os DJs, os donos das festas. Tudo era para homens.

CC: Alguma situação machista daquela época que te marcou? 

NL: Depois eu consegui enxergar… Eu também tinha esse olhar de “lugar de homem”, “lugar de mulher”. Eu vim de uma família conservadora, evangélica. Apesar da minha mãe ser super independente, trabalhar fora, essa mulher que carregava a casa nas costas, enquanto meu pai tinha dependência de álcool e cigarro.

Eu achava que era cuidado… Eles mesmos acham que é isso. Podar de usar saia no palco, de não poder dar risadinha, cumprimentar com beijo… E aí eu fui tirando meu sorriso, porque eu era uma menina que andava de shortinho, mini blusa, topzinho e barriguinha de fora. Passei a cobrir o meu corpo, a usar as roupas dos meus irmãos, porque eu falei ‘bom, tem que cobrir? Beleza’.

Da esquerda pra direita: Negrutil, Dina Di, Negro Vando e Alexandre De Maio — Foto: Arquivo

CC: Então, a Liliane precisou assumir uma nova personalidade para ser levada a sério e ter credibilidade como Negra Li?

NL: Exatamente, porque eu achava que era assim que funcionava, que era o normal, entendeu? 

CC: Você começou a transitar entre o rap e outros estilos musicais cedo na sua carreira. Foi um processo fluido ou era um tabu?

NL: Eu dei as costas para muitas oportunidades. Recusei uma proposta que o Chorão me trouxe pessoalmente dizendo que ia ser meu padrinho naquela gravadora. Lembro que era um dinheiro de 200 mil reais, o que na época daria para comprar um apartamento e viver independente. Eu falei não.

Ele me chamou também para cantar no programa da Xuxa, eu falei não, “eu não vou para televisão cantar rock, Chorão. Eu sou do rap”. Ele falou: “Li, pelo amor de Deus”. Nesse dia – eu não esqueço essa conversa – ele falou assim, “Eu sei que é assim o movimento, eu amo os caras, são irmãos, mas você pode mais. Você é uma diva da música, você não é só do rap. Sua voz alcança outros lugares, por favor, não pense assim, tira isso da sua cabeça, não se prenda”. 

Mas na época foi difícil absorver e assimilar, eu estava muito moldada. Só depois eu fui entender, e perdi essas oportunidades. Depois, me levaram a assinar com a mesma gravadora, sem ter um cuidado, sem ter esse dinheiro que ele garantiu.

Charlie Brown Jr e Negra Li na gravação da música “Não é Sério” no MTV 2003 — Foto: Reprodução/YouTube

CC: Em um trecho do seu novo single Era?feature=oembed" frameborder="0" allowfullscreen> uma vez Liliane, você diz: “Sei o que é viver / Não é sobreviver”. Gostaria que falasse sobre essa inversão da lógica do sobreviver para viver. 

NL: Quando a gente tá dentro daquele universo da periferia, a gente é um universo, né? A gente fica ali e é difícil ver além daquilo. Eu nasci e cresci sem internet, sem poder ver o mundo, a não ser ao que eu tivesse acesso por conta de grana.

Então era muito difícil visualizar, se você não visualiza, como você vai sonhar com algo que você nem consegue visualizar? Vai ficar inatingível, então quando a gente percebe isso, e eu sempre tive uma coisa dentro de mim que eu ficava inquieta, eu olhava assim para as ruas onde eu andava, eu ia a pé de Brasilândia até Pirituba para ensaiar, quase que diariamente. 

Então eu pensava em diversas possibilidades, eu sempre sonhei em viajar muito e sempre falava que eu quero conhecer o mundo. Então é isso que eu quero dizer com a música, que a gente merece e precisa ter além do nosso sustento.

Por isso que o discurso do Lula ele é inteligente, ele sabe com quem ele tá falando, ele conhece o pensamento de quem é pobre, de quem tá ali. Quando ele fala da picanha, do churrasquinho, não é literal, é essa coisa de tipo assim: “eu trabalho, eu tenho meu sustento, mas eu também quero o meu momento de curtir, de relaxar, de usufruir de todo o meu trabalho que eu tive”. 

CC: Seus filhos tiveram uma vivência diferente, correto? 

NL: Eles já cresceram em um ambiente diferente, mais amplo, então meus filhos já criancinhas foram para Disney, já viajaram o mundo, já tem passaporte carimbado, então eles sabem que existe um mundo a percorrer, a explorar, entendeu? 

Negra Li e os filhos Sofia e Noah — Foto: Reprodução/Instagram

O medo de quando você entra no mercado, eu me vejo fazendo isso ainda hoje. Dependendo do lugar que eu vou, se eu vejo que o segurança tá olhando, eu faço questão de deixar minhas mãos à vista. De colocar no carrinho longe do meu corpo. É uma coisa que você vai carregando. E que eu tenho certeza que os meus filhos já vieram com outro chip, porque eu não percebo isso neles. 

Eu sempre falo que eu sempre ando para frente sem esquecer do passado, sem esquecer dos ancestrais, eles estão comigo e me lembram a todo momento.

Toda vez que eu quero desanimar, ficar triste e reclamar, eu sempre penso assim, imagina uma ancestral falando para mim: “Você tá reclamando querida? Você tem liberdade, né? Você é livre, né? Olha que legal, ela tem uma casa, poxa. Ninguém precisa assinar nenhum documento de alforria”. Isso daí me dá sempre um gás de continuar o legado e ficar cada vez melhor. 

E isso graças à Deus com terapia, com muita vivência, a gente vai deixando cada vez mais para trás, mas quando eu fiz uma sessão em que eu voltei pra esse momento, eu chorava horrores com várias situações escolares.

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