Cultura
Mestre Dadinho pede mais samba no pé
Figura emblemática do Carnaval paulista diz que foliões passaram a marchar na avenida


Os estudos são claros em associar a origem do samba não apenas a um gênero musical, mas ao movimento corporal, às palmas, ao balanço. Para o Mestre Dadinho, o Carnaval atual abandonou, no entanto, a dança ritmada, marca histórica da manifestação popular.
Baluarte do samba e figura emblemática do Carnaval paulista, Mestre Dadinho ou Seu Dadinho, 75 anos, vivencia a folia desde os tempos dos cordões, na Avenida São João, e dos desfiles na Avenida Tiradentes com arquibancada, mas de separação quase inexistente entre o público e o folião da escola.
“Tem que ter samba no pé. Hoje acabou o dançarino. Acabou o ‘na palma da mão’. Você vê o desfile e os componentes estão marchando um atrás do outro. Isso é coisa do regulamento. Se você sair da marcha você é punido”, lamenta.
Segundo ele, a falta de evolução dos foliões endureceu a escola na avenida: “Não sei nem como julgam (o quesito) evolução por que não permitem mais isso”.
Seu Dadinho conta que essa mudança aconteceu quando os desfiles das escolas passaram a ocorrer no Sambódromo do Anhembi, no início dos anos 1990.
“Entristece-me. Não tem passista. Antigamente a gente dizia um para outro: ‘pô, fulano dança para chuchu’. No passado, na escola, todo mundo era passista”, lembra ele, que além de percussionista da bateria da escola de seu coração, a tradicional Camisa Verde e Branco, foi exímio dançarino da agremiação.
“Está na essência do samba a dança. O que se fazia nos salões de baile, se fazia na escola. Não se tem mais ala de gafieira, por exemplo, de paço marcado. Os foliões são obrigados a correr e cumprir horário do desfile”, queixa-se.
Perda da autenticidade
➤ Leia também: As novas e delicadas vozes do samba
O sambista considera que no passado a escola era, de fato, uma celebração de samba.
“Perdeu-se a autenticidade”, resume.
O fato dos foliões marcharem na avenida tem muito a ver com os sambas-enredo, preocupados em encaixar a música no enredo e no desempenho da escola, não tendo espaço à gênese do samba.
Camisa Verde e Branco, escola de Mestre Dadinho (Foto: LigaSP)
Mestre Dadinho frequenta os chamados sambas de comunidade paulistanos – onde costuma ser reverenciado, como Samba da Vela, Terreiro de Compositores, Pagode da 27, Maria Cursi, Samba do Cafofo, entre outros.
Ele avalia que parte do que era feito nas escolas foi absorvido nessas rodas, com encontro de sambistas e apresentação de sambas autorais inéditos.
“A escola de samba tinha concurso de quadra, samba de meio de ano. Hoje só faz samba-enredo”, conta ele, compositor ativo que já produziu várias músicas na Camisa Verde e Branco fora do Carnaval.
➤ Leia também: Crivella será, de novo, alvo de críticas no Carnaval do Rio
Aliás, Dadinho nunca compôs samba-enredo. As quadras das escolas, segundo o sambista, estão ocupadas com tudo que é tipo de evento e pouco com o samba, como antigamente.
No bairro de Vila Prado (Zona Norte da capital paulista) onde seu Dadinho vive há 65 anos, ele é chamado por vários blocos para compor – e comparece no dia oficial do desfile.
“Bloco de rua é mais espontâneo. Isso estava faltando. Algo mais popular. Escola de samba é para quem tem mais poder aquisitivo”, diz o sambista, citando que nos anos 1950 e 1960 existiam também muitos blocos na cidade, depois substituídos por bailes de salão nos clubes.
Mesmo assim Dadinho não larga a escola e vai a todos os ensaios: “Dou um apoio aos jovens. Somos conselheiros. Falo ao microfone, incentivo o pessoal”.
Na madrugada de 4 de março, pelo grupo de acesso, ele desfilará no Sambódromo de São Paulo no carro da Velha Guarda da qual faz parte – a ala, cita-se, grava segundo disco esse ano com várias músicas do mestre.
“Não sei explicar a emoção que sinto na avenida”, comenta com os olhos marejados do alto de seus 60 anos de fidelidade à agremiação verde e branca.
Eduardo Joaquim, Seu Dadinho, casado, pai de três filhos e hoje aposentado dos Correios, teve sua casa transformada numa extensão da escola.
Com toda sua família envolvida na formação de alas da agremiação, preparava fantasias que se espalhavam pelos cômodos da residência.
Mestre Dadinho é um daqueles personagens da cultura popular onde a televisão não alcança no desfile do Sambódromo por conveniência ou ignorância, transformando a transmissão numa falsa realidade.
Sua sabedoria é, porém, o ponto de partida do entendimento do Carnaval no contexto sociocultural.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.