Cultura

Programação do Masp destaca as raízes populares e africanas da arte brasileira

Na abertura do ano, o museu tem exposições com trabalhos de Alfredo Volpi e Abdias Nascimento

Diálogos possíveis. Baía de Sangue, obra feita por Abdias Nascimento em 1996, e Madona com Menino, quadro pintado por Alfredo Volpi em 1947
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Em 1950, Abdias Nascimento (1914-2011), intelectual, ativista político, dramaturgo, ator e escritor, criou o Museu de Arte Negra. No acervo, ele fez questão de colocar uma obra de Alfredo Volpi (1896-1988).

Abdias nasceu em Franca, no interior de São Paulo, e era neto de escravos. ­Volpi nasceu em Lucca, na Itália, em uma família de origem simples que migrou para São Paulo quando ele ainda era criança. Ao longo da vida, ambos acabaram por desenvolver certa amizade. Agora se encontram nas duas exposições que dão início à programação de 2022 do Museu de Arte de São Paulo (Masp).

A mostra Volpi Popular, que reúne cerca de cem obras do artista, ficará em cartaz até junho, no primeiro andar do prédio erguido sobre quatro pilares gigantes, na avenida Paulista. Abdias Nascimento: Um Artista Panamefricano, que traz um conjunto de 62 pinturas, ocupará, no mesmo período, os espaços da galeria e do mezanino, no primeiro subsolo.

A exposição de Volpi é a terceira que o Masp realiza tendo como eixo o modernismo brasileiro. Em 2016 e 2019, foram apresentadas, respectivamente, ­Portinari Popular e Tarsila Popular. A ideia da curadoria é apresentar artistas ditos canônicos que desenvolveram uma relação com o popular. Abdias, por sua vez, insere-se na busca do Masp pela incorporação da arte feita por negros, indígenas e mulheres em seu acervo e em suas mostras.

O Masp tem exibido, ao lado dos grandes mestres europeus, artistas indígenas

“Volpi é um artista incontornável da história da arte brasileira e, apesar de ter uma relação forte com o Modernismo, nunca participou de fato do movimento”, diz Tomás Toledo, curador-chefe do Masp. “Ele tinha origem humilde e se especializou em pintura decorativa. Foi casado com uma mulher negra, morou entre o bairro do Cambuci e Itanhaém (cidade do litoral paulista), e teve uma socialização bem diferente do grupo dos modernistas.” Volpi tinha entre seus amigos os frequentadores da marina de Itanhaém – retratada em algumas das pinturas exibidas – e o próprio Abdias.

Abdias, por sua vez, foi uma figura muito conhecida pela carreira política, pela atuação no teatro e pela militância na causa negra. Ele criou, nas décadas de 1930 e 1940, a ­Frente ­Negra ­Brasileira, que originou um partido, e o Teatro ­Experimental do Negro. Sua faceta de artista ­plástico ficou, porém, um pouco apagada.

A relação de Abdias com a pintura, de acordo com Amanda Carneiro, curadora assistente do Masp, remonta à decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 1968. Nesse momento, ele mudou-se para os Estados Unidos, onde passou a dar aulas em universidade. Lá, pintou sua primeira tela.

“A partir desse momento, ele começa a pintar muito”, relata Amanda, que conta também que, na década de 1970, Abdias chegou a expor no Studio Museum, no Harlem, e em outros espaços.

“A gente vê, na obra dele, uma forte representação das religiões de matriz afro-brasileira”, prossegue a curadora, enquanto mostra, pela câmera de seu celular, imagens de Ossan, Ogum, Oxu, Oxalá e Xangô que se deixam antever na montagem da exposição. Entre a simbologia africana surgem, em algumas obras, bandeirinhas típicas de Volpi.

“Parece que ele enxergou o que havia de afro-brasileiro no Volpi e, além disso, entendeu as bandeirinhas como uma síntese do que é a cultura popular no Brasil”, diz Amanda. Na exposição de Volpi, as bandeirinhas estão obviamente presentes, mas são apenas um pedaço dela. “Recuperamos as paisagens e os retratos de santos, que remetem a uma estética dos santeiros populares. Ele tem, por um exemplo, um anjo negro”, conta Toledo.

O acervo do Masp possui um único Volpi, doado para a instituição na década de 1990. E é um Volpi corriqueiro: aquele das fachadas. Mais recentemente, o museu conseguiu, graças a um comodato com a Bolsa do Brasil, uma obra da época em que Volpi ainda pintava paisagens. Outros nove trabalhos do pintor foram cedidos, por um período de dez anos, pelo Banco Central.

Abdias também chegou há pouco tempo ao Masp. O quadro Okê Oxóssi foi doado, em 2018, pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, no âmbito da mostra Histórias Afro-Atlânticas. O instituto é o detentor do museu criado pelo artista na década de 1950.

Esse processo de aproximação entre o Masp e a arte brasileira remonta a 2014, quando Heitor Martins assumiu a sua diretoria e deu início a um processo de resgate da instituição. Cabe lembrar que, em 2013, o museu não estava conseguindo pagar o salário dos funcionários e tinha dívidas, inclusive, com a Eletropaulo, a empresa de energia elétrica de São Paulo.

Assim que chegou, Martins convidou Adriano Pedrosa para assumir a diretoria artística. Tinha início então um processo de revalorização do grande passado do museu e, ao mesmo tempo, de aposta em um presente que Pedrosa adjetiva como “diverso, inclusivo e plural”.

A possibilidade de construção de uma relevância na contemporaneidade vem da própria história do Maso, que, como se sabe, foi fundado em 1947 a partir de uma iniciativa conjunta de Pietro Maria Bardi e Assis ­Chateaubriand.

Modernismos? Um Volpi sem título, de 1950, da coleção Roger Wright, e Okê Oxóssi, feito por Abdias na década de 1970, quando morava nos EUA – Imagem: Coleção Roger Wright

“Nessa época, graças ao olhar e à capacidade de Bardi e a Chateaubriand, que conseguiu dinheiro para as obras, o museu formou um acervo que museus maiores e mais ricos invejam. Isso nos coloca numa situação privilegiada”, diz Pedrosa. O diretor artístico conta que, com frequência, recebe pedidos de empréstimos feitos por museus do porte do ­Metropolitan e do Museu D’Orsay, interessados nos ­Rafael, Ticiano, Van G­ogh, Gaugin, ­Renoir, Goya, Monet, ­Manet, Cézanne e Picasso que o Masp tem.

Graças a isso, o Masp também pode pedir empréstimos para os grandes museus. É o que está fazendo, por exemplo, para uma futura exposição de Gaugin.

Ao chegarem ao Masp, Martins, Pedrosa e os demais curadores perceberam, porém, que encerrado o período de cerca de 15 anos de aquisições estrondosas, o Masp passou décadas formando uma coleção passiva, dependente de doações, nem sempre qualificadas.

Foi criado, a partir dessa constatação, um ambicioso programa de aquisição, que mobiliza conselheiros, patronos e os próprios artistas em torno de doações que façam sentido para a coleção. O foco principal têm sido artistas brasileiros e, cada vez mais, há, dentro desse recorte, o olhar específico para gênero e raça. Até 2013, para se ter ideia, não havia uma única artista mulher ali exposta. E também só recentemente artistas indígenas passaram a ser contemplados.

“Temos essa vontade de ampliar a visão da história da arte, que inclui outras matrizes de conhecimento”, diz Toledo. “Queremos, nesse processo, trazer leituras que não circunscrevam o artista a determinadas instâncias de pertencimento (como raça)”, completa Amanda.

É este novo olhar que tem permitido que artistas de origem popular – alguns dos quais até integravam o acervo, mas pouco eram expostos, como José Antonio da Silva (1909-1996) – passem a compartilhar, com os velhos mestres europeus, os cavaletes de vidro criados por Lina Bo ­Bardi. •


DO LIRISMO À REPETIÇÃO

Paisagista inato, Volpi perdeu o rumo ao aderir a uma fórmula sedutora, destinada a multiplicar o valor atribuído a cada obra

por Mino Carta

Pinceladas. A técnica foi aprendida no uso das brochas do pintor de paredes – Imagem: Avani Stein/FolhapressLogo me impressionou a pincelada de Volpi. Aprendida no uso das brochas do pintor de paredes. Ele era inculto e tosco, mas também paisagista inato, de grande talento.

Pintava em busca de puro prazer e, lá pelas tantas, alguém descobriu sua vocação extraordinária. E foi a hora de perder o rumo. Não sei quais sabichões entraram em cena e tinham meios de induzi-lo a abandonar a pintura, nele inexoravelmente natural, praticada sem alardes, a cumprir o impulso interior.

Inventaram e impuseram, a quem não tinha meios de resistir, uma fórmula sedutora porque multiplicava o valor atribuído a cada obra, à qual, não se sabe exatamente por que, há de repetir a visão de uma janela.

Daí existirem dois ­Volpis, o das paisagens encantadoras, de lirismo único, e o da repetição penosa, da fórmula pretensamente abstrata, ou quase, mesmo quando se percebia sobre a tela a qualidade da pincelada.

É a visão sincera que tenho de um excelente pintor natural, forçado a percorrer, a certa altura da vida, um caminho impróprio, para não dizer falso. A bem de uma modernidade destinada a contradizer as tendências inatas de um grande paisagista.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1197 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Outras matrizes”

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