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Made in Brazil

Por que as animações nacionais recebem reconhecimento artístico, mas raramente chegam ao público amplo?

Baixo orçamento. As produções de Marcelo Marão e Alê Abreu não têm a pirotecnia do padrão Disney, Pixar ou DreamWorks, mas são encantadoras – Imagem: Redes sociais
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Entra ano, sai ano, e nunca termina a choradeira de que o Brasil não consegue produzir um filme capaz de entrar na disputa pelo Oscar. Não custa lembrar que, bem depois das indicações de Central do Brasil e de Fernanda Montenegro em 1999, O Menino e o Mundo, de Alê Abreu, concorreu em 2016 na categoria de melhor animação. Em 2024, o longa Perlimps, realização seguinte de Abreu, entrou na lista de elegíveis da Academia. Quem não precisa do termômetro do Oscar para saber se está fazendo frio ou calor pode preparar-se, ainda, para a estreia, em 25 de janeiro, de Bizarros Peixes das Fossas Abissais.

O título extravagante é uma isca para o público, que fica mais da metade da projeção querendo saber quando será abocanhado pelos tais peixes bizarros. O primeiro longa de Marcelo Marão demorou dez anos para ser concluído e carrega em cada frame os encantos de um projeto autoral. Assim como nos três longas de Abreu, a qualidade aqui não se mede pela semelhança com a pirotecnia visual do padrão Disney, Pixar ou DreamWorks. É na diferença que a animação brasileira se torna interessante.

Para começar, Bizarros Peixes das Fossas Abissais é uma animação adulta, embora possa ser exibida e curtida por crianças. Sua fórmula narrativa não menospreza os ingredientes elementares do cinema comercial e coincide em mais de um aspecto com os filmes de ação mais consumidos. Sua protagonista é uma mulher negra de formas abundantes, mas tem superpoderes mais surpreendentes que Scarlett Johansson no figurino de Viúva Negra.

A jornada dessa heroína começa com ela escapando de uma agressão numa quebrada da Baixada Fluminense. Adiante, ela atravessa o mundo em busca de uma planta milagrosa e enfrenta guardiães nada amigáveis. A apoteose é uma batalha de tirar o fôlego no fundo do mar. A personagem compartilha o mesmo DNA da maioria dos super-heróis, quase sempre gente como a gente, mas que em um clique se transforma em algo maior que a vida.

Seus parceiros são mais inusitados. Um poderia ser o Hulk, pois também é verde, mas é uma pequena tartaruga com TOC. Suas manias, na interpretação valiosa de Rodrigo Santoro, entregam os monólogos mais divertidos do filme. O trio completa-se com um tipo que tem os atributos de uma fisiologia aquosa, tal qual o Aquaman. Mas se trata de uma nuvem que padece de incontinência pluviométrica. Enquanto a construção dos personagens e as peripécias são carregadas de sarcasmo, as escolhas visuais também adotam distância irônica.

Bizarros Peixes das Fossas Abissais estreia em 25 de janeiro. Perlimps está na lista de elegíveis do Oscar

Como se trata de um filme de baixo orçamento, feito com equipe mínima, ­Marão assume que desobedeceu às regras do processo da animação. “Entreguei para a Rosária e o Fernando Miller, artistas e meus parceiros de muito tempo, a tarefa de fazer cenas inteiras”, exemplifica o diretor, roteirista e diretor de arte do longa. A escolha favorece, em primeiro lugar, o resultado plástico das cenas. O filme começa com um personagem de traços simples e descolorido, sugerindo uma condição que só se revela na metade da história. O conceito produz efeitos mais interessantes ao longo da narrativa, quando o filme assume riscos ao introduzir outros ritmos e emoções, quebrando a fruição convencional baseada na ação incessante. Numa pausa de forte impacto, um monólogo reflexivo arranca o público do regime da fantasia. Noutro, a imersão mescla-se com o puro prazer num jogo de formas e cores ambientado no espaço sem luz das fossas abissais.

“O público que frequenta festivais de animação tem o hábito de assistir a sessões compostas de diversos curtas, em que é marcante a diferença de técnicas, de tempos. Neste primeiro longa, eu quis manter essa lógica estranha”, afirma Marão. “O próprio desenvolvimento do projeto em modo estendido, ao longo de muitos anos, permitiu inserir ideias que não estavam no roteiro, contribuiu para essa estrutura feita de mudanças, igual a própria vida.”

Existe espaço ainda para esse tipo de cinema de espírito e feitura mais artesanal? A animação é uma linguagem que favorece o insólito, em que a imaginação não tem de lidar com os mesmos limites dos filmes em live-action. “Além disso”, acrescenta Marão, “limitá-la ao audiovisual direcionado para crianças, tipo Disney, é desconhecer a amplitude de ficções adultas e de documentários feitos em animação.”

Nem é preciso perder muito tempo para encontrar em plataformas de aluguel de filmes exemplos como o documentário Flee – A Fuga, indicado ao Oscar de melhor filme internacional em 2022. Assinantes da Netflix podem conferir, entre outros, o documentário Marcados: A História do Racismo nos EUA (2023), a ficção histórica America: The Motion Picture (2021) ou a ficção adulta Perdi Meu Corpo (2019).

Parte dessa produção perdeu sua principal janela de exibição quando o Anima Mundi interrompeu sua regularidade. O festival realizado no Rio de Janeiro, em São Paulo e, de modo difuso em outras cidades, perdeu seus patrocinadores e a edição de 2019, a última, foi garantida por vaquinhas. Mas deve voltar em 2024. “Além de espaço de exibição da produção mundial, o Anima Mundi consolidou-se como um ninho de talentos jovens”, destaca o diretor de Bizarros Peixes das Fossas Abissais. •

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Made in Brazil

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