Cultura

Livro desvenda Raul Seixas: de roqueiro sábio a ícone do hippismo bebum

Biografia de Raul Seixas mostra como se forjou o sábio popular que misturava rock com baião e Jorge Luis Borges com Aleister Crowley

Foto: Mario Luiz Thompson
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É uma infelicidade que Raul Seixas tenha se transformado, ainda em vida, mas sobretudo depois de morto, no ícone de um hippismo de fim de feira, acossado pelos punks, e que melhor se traduz na figura do duende de Durepóxi, tão falso quanto medonho. Seus óculos escuros e seu cavanhaque freudiano, marcas registradas, foram pirateados por sósias desmiolados, numa bizarra profusão de malucos beleza à espera de UFOs, maconha e cachaça. Advém desse estado de coisas o brado retumbante das fogueiras, embebido no Sangue de Boi, com alguma sorte no Old Eight ou no Natu Nobilis: Toca Raul!, lembrança risível do artista monumental solapado por uma idolatria idiotizada e idiotizante.

Pois bem, com Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida, o jornalista Jotabê Medeiros, escriba também nesta CartaCapital, devolve a Raul o latifúndio que lhe cabe na música brasileira desde o baião até o rap (ou o repente de Ouro de Tolo não é um precursor do gênero consagrado por Mano Brown e os Racionais?).

Escreve Jotabê, lá pelas tantas de seu livraço de 416 páginas, apêndices incluídos: “Muitas das teses que poderiam explicar a permanência da obra de Raul parecem esfumaçar-se aos primeiros acordes de Mosca na Sopa ou Metamorfose Ambulante, de seu primeiro disco-solo. Já estava tudo ali: a antevisão criadora, a presença de espírito, a capacidade de articulação política da palavra. Mas, principalmente, pressentimos um tipo de sequestro da razão, a capacidade de tirar o ouvinte de seu estado de autocontrole e oferecer a ele uma outra porta para a percepção, para a libertação.

Essa promessa amplamente realizada de Raul o projeta num nicho particular, só dele, embora equilibrado entre os grandes da música brasileira – como os hábeis cancionistas capazes de articular música e letra (Chico Buarque, Noel Rosa, Cartola, Luiz Melodia, Caetano ou Gil); os poetas de inesgotável capacidade de malabarismo e atualização dos temas e das palavras (Cazuza, Renato Russo, Torquato Neto, Antonio Cicero); e os músicos de invenção (João Gilberto, Tom Jobim, Guinga, Jackson do Pandeiro)”.

Segue Jotabê: “Em torno dessas habilidades circulava de um jeito nômade a figura do sábio popular, esta a mais complexa e difícil de emoldurar”. O sábio Raul, aquele que nascera há 10 mil anos atrás, é fruto da parceria com o escritor Paulo Coelho, então um editor de revistas alternativas interessado… em UFOs.

Na ocasião em que os dois se conheceram, Raul tinha acabado de abandonar a auspiciosa carreira de produtor da gravadora CBS, emprego que lhe pagava 4 mil cruzeiros por mês (está em Ouro de Tolo) e o obrigava a uma pastinha do tipo 007. Deu-se conta de que precisava voltar a cantar quando lançou o “maldito” Sérgio Sampaio e desejou ser ele próprio o capixaba que faria sucesso com Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua.

Na ausência da chefia, chegou a gravar com o amigo Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, LP que nada ficaria a dever a um Frank Zappa, mas léguas e léguas adiante de seu tempo, a saber se ainda hoje o alcançamos. A resenha de Henfil, publicada em O Pasquim, está em parte transcrita na biografia: “Sérgio Sampaio, Raul Seixas, Edy e a gostosíssima Miriam Batucada (que joelhos!). Disco piradão! Músicas cafonistas! No início de cada faixa tem uma gracinha e no fim um ruído horripilante de legorne [legorne é um tipo de galinha poedeira]! É genial! Parece gravação que a gente faz em casa, todo mundo se despingolando na frente do gravador… Aí, no fim, o disco se suicida com um formidável som de descarga! Juro!”

O livro devolve a Raul o latifúndio que lhe cabe na música popular brasileira

Voltemos, porém, a Paulo Coelho, não apenas o parceiro letrista de Raul, como o Erasmo de Roberto, antes o Olavo de Carvalho dos Bolsonaro (perdão, PC). Durante a ditadura civil-militar, em 1973, Paulo e sua companheira à época, Aldalgisa, haviam concebido um gibi para acompanhar o primeiro disco-solo de Raul Seixas, Krig-Ha, Bandolo!, a “obra-prima de cabo a rabo”. O encarte de 23 páginas “custaria caro à vida pessoal de seus articuladores: dois deles sofreriam torturas físicas e um dos torturados ficaria com a vida praticamente aniquilada”.

Esforço. Medeiros faz um relato crítico e pormenorizado de um personagem complexo e até hoje mal compreendido (Foto: Renato Parada)

O material era uma miscelânea que juntava textos apócrifos a personagens da indústria dos quadrinhos, como Batman, Hulk, Mandrake, Homem-Aranha e Homem de Ferro. No fim, havia uma frase, como diz o Queiroz, a cair como “uva” para os dias atuais: “A coisa mais penosa do nosso tempo é que os tolos possuem convicção, e os que possuem imaginação e raciocínio vivem cheios de dúvida e indecisão”. A ficha de Raul na Polícia Federal falou em folhetos distribuídos “clandestinamente”, a conter “propaganda subversiva e mensagens justapostas e subliminares”. Havia ainda o agravante de ser Krig-ha, Bandolo! um berro anti-imperialista – em sua origem, um grito de guerra do Tarzan. 

Chamado ao Dops para explicar as letras do disco, Raul telefonou para Paulo e pediu que o acompanhasse. Era maio de 1974 e o LP contava mais de 100 mil cópias vendidas. Paulo ficou na sala de espera. O cantor foi liberado meia hora depois. Mas o parceiro, que nem sequer havia sido intimado, foi torturado por duas semanas.

Em sua pesquisa, Jotabê colheu um documento oficial que sugere ter sido Raul Seixas o delator de Paulo Coelho, à época filiado ao PCBR. O autor não faz ilações, não julga. Apresenta os fatos, mostra o documento do Ministério do Exército que cita “através do referido cantor, tentar localizar e prender Paulo Coelho e Adalgisa Rios”, ela do PCdoB. Por fim, aceita a inconclusão sobre o assunto. 

Polêmica. O autor não entra no mérito se Seixas caguetou ou não o parceiro Paulo Coelho

“Achei que levava esse segredo para o túmulo”, comentou Paulo Coelho no Twitter. A suposta confirmação do episódio fez crescer uma onda de rechaço a Raul na rede social, repelida por Paulo. “Não faça isso. Eu vi os documentos que Jotabê me enviou, já tinha conversado com Raul a esse respeito (um dia que ele estava, digamos…) e águas passadas não movem moinho.” Mais tarde, voltou ao assunto: “Começo a ter sérias dúvidas dos documentos que o Jotabê Medeiros me enviou, dizendo e insistindo que Raul tinha me denunciado (e-mails arquivados). O que passou entre Raul e eu fica entre nós. (…) Acho que o cara quer apenas vender a porra do livro”, disse o escritor que vendeu 350 milhões de livros, segundo estimativa do Washington Post.

Do mesmo autor de Belchior – Apenas um rapaz latino-americano (Todavia, 2017), Não diga que a canção está perdida é um relato crítico e pormenorizado de um personagem complexo e sua obra, desde antes da filiação ao fã-clube de Elvis, em Salvador, até depois do reencontro com Paulo Coelho, pouco antes da morte do cantor, consumido pela bebida e pela droga. Em 44 anos de vida, Raul Seixas “deixou 312 canções registradas como composições suas, trabalhando gêneros tão distintos quanto tango, country, baião, samba, acid rock, iê-iê-iê, marchinha, forró, folk, brega, xote, xaxado, balada. Raul também deixou dezenas de músicas inéditas nas mãos de ex-parceiros. Isso resulta em mais de uma canção por mês, o que dá a dimensão da prodigiosa criatividade e febril disposição do baiano para a arte da música”.

Mestre do disfarce, o baiano escapou ileso da censura ao trocar ditadura por dentadura

A maneira como Jotabê “decupa” os clássicos de Raul nos compele a correr até o toca-discos e reviver suas músicas. Loteria da Babilônia, ensina o autor, bebe na fôrma de Jorge Luis Borges, ao mesmo tempo que cita o mago e enxadrista Aleister Crowley. Agora é necessário/ Gritar e cantar rock/ E demonstrar o teorema da vida/ E os macetes do xadrez”. Fica-se a saber, também, que a ditadura registrou na ficha de Raul que Ouro de Tolo era tão somente um ataque a Roberto Carlos, um amigo do regime. Censurado em incontáveis passagens de suas canções, o refrão Quem não tem colírio/ usa óculos escuros foi classificado como “em inconformidade com o status quo do Brasil atual”. Mestre do disfarce tanto quanto Chico Buarque, escapou ileso ao trocar “Ditadura Postiça” pela famosa “Dentadura Postiça”. Agora a sério: Toca Raul!

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